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quarta-feira, 2 de março de 2011

A Casa dos Mortos

* Documentário: "A casa dos Mortos" - A trágica realidade dos manicômios judiciais

http://www.youtube.com/watch?v=FLuZVLojKJw 

Presos com distúrbios mentais costumam passar o resto da vida em manicômios

Código Penal define o tempo máximo de detenção no Brasil em 30 anos, o que não vale para internados em manicômios judiciários, que sabem quando entram, mas não quando vão sair
Renata Mariz - Correio Braziliense
Iano Andrade/CB/D.A Press
Nenhum cidadão brasileiro pode, por pior ato que tenha praticado, ficar mais de 30 anos preso. Está garantido no Código Penal, artigo 75. Mas a regra não vale para todos. Geraldo* passou as últimas três décadas da vida atrás das grades por ter furtado uma pasta de documentos com 100 cruzeiros, o que corresponderia hoje a menos de R$ 15. Pela insignificância do crime, o homem, de 58 anos, que permanece detido em Porto Alegre (RS), nem deveria ter sido trancafiado. Uma característica, porém, diferencia Geraldo da maioria dos demais brasileiros. Ele sofre de esquizofrenia paranoide e algum retardo mental. Embora o ordenamento jurídico recomende tratamento para pessoas com distúrbios psiquiátricos, e não cadeia, a vida real tem se encarregado de condená-las à prisão perpétua.

Existem hoje no Brasil cerca de 5 mil pessoas em manicômios judiciários, também chamados de hospitais de custódia, distribuídos em 17 unidades da Federação. A média de internação nesses locais, onde reina a lógica prisional no lugar da médica, ultrapassa uma década. É fácil encontrar gente com 20, 30 e até 40 anos nas instituições. Na gíria dos próprios pacientes, viraram “patrimônio”, sumiram socialmente. “Como em boa parte dos crimes, a ocorrência se dá no contexto familiar, o processo de retorno à casa é muito complicado. Às vezes, você já tem o laudo médico recomendando a desinternação do paciente, mas não há para onde mandá-lo”, explica Ana Cristina de Alencar, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

É o que ocorre com Alberto*, há 32 anos no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, no Rio de Janeiro. Internado desde 1977, por homicídio, o homem que entrou aos 31 anos na cadeia e hoje tem 63 já sonhou em ganhar as ruas, gozar a liberdade, com o aval dos médicos da instituição. “Do ponto de vista psicológico, apresenta condições de ser desinternado…”, repetem dezenas de laudos anexados ao prontuário dele desde a década de 1990. Mas o exame de saúde positivo, que assegura a estabilidade de sua esquizofrenia, não é suficiente para libertar Alberto. Na hora de autorizar o livramento, os juízes também avaliam o vínculo familiar. Na falta dele, costumam negar a “alta”.

Hoje, o homem que passou mais da metade da vida preso anda amuado em sua cama. “Estou dormindo”, diz Alberto, para abreviar o papo, na cela dividida com três internos. Já Geraldo, trancafiado em Porto Alegre há 30 anos por causa de aproximadamente R$ 15, planeja coisas comuns para o dia em que puder ser livre. “Quero trabalhar e dançar. Em casa, porque nos bailes a gente gasta dinheiro”, adverte. Ele conta que era bom no forró, até o episódio do furto. “Foi uma confusão de uma pasta no centro”, comenta Geraldo, que tinha histórico de 12 internações em hospitais psiquiátricos antes de ser levado ao manicômio judiciário.

Cadeados O ambiente nessas instituições se diferencia do funcionamento de qualquer penitenciária por um único detalhe. Durante o dia, a maioria dos internos pode caminhar em áreas coletivas. Esquemas de segurança são menos rigorosos, até porque dificilmente há tentativas de fuga. Ao fim da tarde, entretanto, agentes carcereiros, e não funcionários da saúde, passam os cadeados nas celas, que deveriam ser enfermarias. A precariedade das instalações assusta olhos pouco habituados ao caos dos presídios. Roupas penduradas nas celas e muitas garrafas plásticas de refrigerante repetem-se a cada cubículo. “Eles pegam água no bebedouro, lá embaixo (no pátio), para passar a noite”, explica o inspetor Paulo Roberto Figueiredo, do Heitor Carrilho, no Rio, onde estão em torno de 160 pacientes hoje.

Em Porto Alegre, no Instituto Psiquiátrico Forense Dr. Maurício Cardoso (IPF), a situação não é muito diferente. O pavilhão que abriga dependentes químicos tem espumas sem capa que servem de colchão. É difícil não ter náuseas ao entrar nos banheiros com latrinas encardidas. O barulho, habitual em unidades psiquiátricas convencionais, é bem menos intenso nos manicômios judiciários. Muita gente simplesmente dorme. No Rio de Janeiro, ao fim de cada corredor com celas, uma chapa de aço faz as vezes de espelho. Andreia, 34 anos, há três internada por ter agredido o próprio filho, se penteia diante das próprias formas distorcidas. “Gosto de me cuidar”, admite.

Para tratar os distúrbios mentais dos pacientes, equipes formadas geralmente por psiquiatras, psicólogos e profissionais da enfermagem são contratadas. A falta de funcionários, entretanto, é corriqueira. “Temos constatado carência em todos os sentidos. Há resistência dos profissionais em atuar com essa população teoricamente violenta”, diz Elias Abdalla, do Departamento de Psiquiatria Legal da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que faz um levantamento sobre os manicômios judiciários brasileiros. Na parte de terapia, os espaços destinados a oficinas de pintura, teatro, entre outras atividades, quando existem, funcionam de forma precária.

Duplo estigma “A administração dos hospitais de custódia continua ligada à gestão prisional e não à saúde. Por que essa diferença entre o paciente que praticou crime e o que não praticou? A Lei 10.216 (que rege o atendimento em saúde mental no país) não faz essa distinção”, critica Carmen Sílvia Barros, defensora pública em São Paulo. Diretor do IPF, o psiquiatra Rogério Cardoso concorda com o raciocínio, mas tem dúvidas sobre a perspectiva de melhora. “Teoricamente, seria melhor se o sistema estivesse com a saúde, mas do jeito que anda a prestação de serviços na área nem dá para saber”, alfineta o médico.

Tanto faz na saúde ou na segurança pública. Para José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, o interno de manicômio judiciário será duplamente estigmatizado sempre. “Ele carrega as duas marcas, de louco e de criminoso. Enquanto o que é somente criminoso pode ter progressões de regime, remissão da pena, o louco, não”, lamenta.

* Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados

PERFIL
Pesquisa realizada em Porto Alegre (RS) mostra o perfil
da população de manicômios judiciários. Os resultados
representam a realidade das demais instituições do país

60% têm esquizofrenia

33% cometeram ao menos um homicídio, ato mais comum

89% são homens

40% tinham de 20 a 29 anos no dia do delito

Fonte: Levantamento com 618 internos no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF)

Castigo
De uma cela isolada, vedada por um portão espesso de ferro, com uma pequena abertura na parte inferior, quase rente ao chão, surgem dois rostos. Uma mulher negra e outra de pele alva pedem socorro. Os gritos são agudos, assustam as outras internas que estão na fila para o almoço. Verônica*, de 24 anos, conta que está há quase um mês no cubículo, que fica em uma área distinta das demais celas do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho, .

“Aqui tem rato, barata. A gente não toma banho, estamos no inferno”, berra Verônica*. Disputando a pequena abertura na porta de aço, a outra mulher implora por ajuda. “Estou há três anos neste lugar (referindo-se ao manicômio judiciário), me tira daqui”, suplica. O inspetor da unidade, Paulo Roberto Figueiredo, explica que é necessário colocar internos separados dos demais quando há brigas. “Se deixamos as duas lá na ala feminina, mesmo que em local isolado, tem gritaria e confusão do mesmo jeito”, diz.
Rumo ao fim dos manicômios
A luta antimanicomial, o mais importante movimento pela reforma psiquiátrica no brasil, teve início durante o regime militar e ainda enfrenta desafios.
por Paulo Amarante


Sempre que algum aluno me pergunta o que deve ler para começar a compreender a questão da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, indico sem pestanejar "O alienista", de Machado de Assis, conto publicado sob forma de folhetim entre 1881 e 1882. Machado foi, sem sombra de dúvida, o pioneiro na crítica ao saber e às instituições psiquiátricas no Brasil (e talvez no mundo - "Enfermaria no 6", de Anton Tchekhov, é de 1892). Nesse conto clássico, Machado antecipou todas as críticas ao paradigma psiquiátrico que anos depois seriam aprofundadas por autores como Michel Foucault, Franco Basaglia, Erving Goffman, Ronald Laing, David Cooper, entre outros.

É realmente impressionante a sagacidade do autor, a forma como ele apreende o processo de constituição da psiquiatria e como identifica e destaca seus pontos mais frágeis e seus dispositivos de poder. Primeiro quando se refere à necessidade de criação do hospício como uma demanda externa, artificial, vinda de um cientista recém-chegado da Europa: "A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes", diz Simão Bacamarte, protagonista da história. Depois quando evoca o princípio universal de internar todos os loucos em um único espaço, pois só aí seria possível pesquisar e identificar todos os tipos de loucura. Sem falar na idéia segundo a qual a loucura seria a ausência da razão: "Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia".

Em "O alienista" tudo nos aproxima da história real de Philippe Pinel e de seu trabalho na construção do alienismo no final do século XVIII. Suspeito, aliás, que Machado de Assis tenha acompanhado bem de perto a trajetória de João Carlos Teixeira Brandão, conhecido como o "Pinel Brasileiro". Fundador da psiquiatria brasileira, Brandão fez severas críticas ao primeiro hospício no país, o D. Pedro II, no Rio de Janeiro, do qual foi nomeado diretor médico em 1890. Nesse mesmo ano, assumiu também a direção da Assistência Médico-Legal aos Alienados, o primeiro órgão nacional de normatização e coordenação da assistência psiquiátrica.

Com Machado de Assis podemos questionar: por que um saber tão frágil e inconsistente acumula tanto poder? Essa foi a pergunta de Foucault, muito tempo depois de Simão Bacamarte já havê-la respondido. Aliás, se Machado tivesse escrito "O alienista" um século depois, poderíamos concluir que Foucault, Basaglia e todos os outros aos quais me referi acima estavam entre suas leituras.
Ou poderíamos suspeitar que foram eles que leram o Bruxo do Cosme Velho, mas não o citaram em suas obras. Por intermédio de Simão Bacamarte, Machado questiona a idéia de ciência como produtora de verdade e sua pretensão de se apresentar como um saber neutro e desinteressado; denuncia a função da psiquiatria na construção do ideal de normalidade e de sociedade, bem como a relação entre a psiquiatria e ordem pública.

Inicialmente é importante observar que a psiquiatria como atualmente a conhecemos nasceu com o nome de alienismo. Essa foi a denominação dada por Pinel à ciência dedicada ao estudo da alienação mental. Reconhecido como o pai da psiquiatria, uma enorme quantidade de hospitais psiquiátricos em todo o mundo leva seu nome; nome esse que também virou sinônimo popular e pejorativo de "louco" em muitos países. A expressão "alienado" tem a mesma origem etimológica de alienígena, alien, estrangeiro, de fora do mundo e da realidade.

Colônias de Alienados
Em A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo, Robert Castel analisa as estratégias adotadas na construção do que ele denomina de síntese alienista. E destaca, em primeiro lugar, o conceito de alienação mental como distúrbio da razão, que torna o alienado alguém incapaz de exercer a cidadania, historicamente resgatada como princípio da democracia e da república instalada na França revolucionária de Pinel. É importante lembrar que o médico francês foi deputado federal constituinte, um político atuante que participou da elaboração da primeira carta constitucional - que deu origem à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Um segundo aspecto discutido por Castel é o princípio do isolamento, recurso necessário para retirar o alienado do meio confuso e desordenado e incluí-lo em uma instituição disciplinar regida por regulamentos, normas, rotinas, mecanismos vários de gestão da vida cotidiana que, em tese, reordenariam o mundo interno do alienado e o resgatariam para a razão. Essa perspectiva já delineia o terceiro aspecto da síntese alienista, que caracteriza a estratégia denominada tratamento moral, um conjunto de medidas que submeteriam o alienado ao jugo da ordem e da norma.

Uma das mais importantes aplicações do tratamento moral estava no trabalho. Daí a origem de inúmeras instituições psiquiátricas, denominadas "colônias de alienados", espalhadas por todo o mundo, particularmente no Brasil, onde foram responsáveis por parte considerável de nossos quase 100 mil leitos psiquiátricos no final da década de 1980. A idéia era levar os alienados para os hospitais-colônia, onde pudessem trabalhar, principalmente na lavoura, pois o trabalho os recuperaria. A expressão "colônia" é muito curiosa e provém da noção de um aglomerado de pessoas de uma mesma origem que se estabelecem em terra estranha, voltadas para um mesmo objetivo. Com essa concepção foram criadas, em 1890, meses após a proclamação da República, as primeiras colônias de alienados do Brasil, na Ilha do Governador, estado do Rio de Janeiro. Lá trabalhou o pai do escritor Lima Barreto que, assim como o filho, foi mais tarde internado num hospício. Isso resultou, pelas mãos do filho, em algumas das mais importantes obras da literatura brasileira, todas elas muito críticas ao modelo e às instituições psiquiátricas: o Diário do hospício, O cemitério dos vivos e Como o homem chegou. Não considero equivocado incluir, no aspecto da crítica à ciência e ao positivismo de Estado, o Triste fim de Policarpo Quaresma - outra obra-prima.
Considerando a extensão do Brasil, assistimos a uma proliferação de macrocolônias de alienados por todos os cantos do território nacional, quase todas criadas pelos psiquiatras Juliano Moreira e Adauto Botelho, diretores nacionais de assistência psiquiátrica entre 1910 e 1930, e 1930 e 1940, respectivamente. Em quase todos os estados existem ou existiram manicômios com o nome de um ou de outro, quando não de ambos. A colônia do Juqueri, em São Paulo, foi a maior de todas, chegando a abrigar 16 mil internos.

No início dos anos 40 havia 24 mil leitos psiquiátricos no Brasil, dos quais 21 mil eram públicos e 3 mil privados. Depois do golpe militar de 64, o setor saúde viveu o mais radical processo de privatização do mundo. A psiquiatria foi a área mais explorada e preferida pelas empresas privadas, na medida em que a falta de direitos dos usuários, somada à baixa exigência de qualidade no setor, facilitava a construção ou transformação de velhos galpões em "enfermarias". A "indústria da loucura", como ficou conhecida, fez o número de leitos saltar de 3 mil para quase 56 mil, ao mesmo tempo que os investimentos no setor público começavam a diminuir. Responsável por essa política de privatização desmesurada, Leonel Miranda, então ministro da Saúde, tornou-se proprietário do maior manicômio privado do mundo, a Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, estado do Rio, que até 2002 tinha quase 2 mil leitos totalmente financiados com recursos do Sistema Único de Saúde. Hoje a instituição funciona sob intervenção federal, ainda com cerca de 600 leitos.

Miséria e solidão
Ainda estudante de medicina, trabalhei como estagiário em um hospital-colônia de uma cidade na Grande Vitória, Espírito Santo. Lá fui marcado definitivamente pela trágica experiência: centenas de pessoas nuas, imundas, fétidas. Imagem e odor do abandono, do descaso, da miséria e da solidão. Para um jovem estudante que sonhava aliviar o sofrimento psíquico das pessoas, aquele certamente era um mau começo.

Saí do Espírito Santo acreditando que aquelas condições absolutamente precárias deviam-se ao fato de eu estar em um hospital público de uma cidade pobre, em um estado esquecido pelo desenvolvimento. Parti para o Rio de Janeiro, mas, para minha decepção, encontrei uma situação muito semelhante e, por que não dizer, ainda pior. Além da exclusão de pessoas em sofrimento mental, encontrei presos políticos nos hospitais psiquiátricos, que em nada se diferenciavam dos campos de concentração.

Em 1978, eu e mais dois colegas plantonistas do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, decidimos denunciar uma série de violações aos direitos humanos das pessoas lá internadas. Como se tratou de uma denúncia escrita, registrada em documento oficial, a resposta foi imediata e violenta, como era comum naqueles tempos. Além de nós três, foram demitidos mais 263 profissionais que ousaram nos defender ou que confirmaram nossas denúncias. Nasceu aí o movimento de trabalhadores da saúde mental que, dez anos mais tarde, transformou-se no movimento de luta antimanicomial, ainda hoje o mais importante movimento social pela reforma psiquiátrica e pela extinção dos manicômios.
Não denunciamos apenas os maus-tratos aos "pacientes psiquiátricos", mas também a presos políticos que, a exemplo dos gulags da Rússia stalinista, eram internados e torturados nessas instituições. Descobri que a situação do Rio de Janeiro era a mesma do Espírito Santo e, para minha tristeza, constatei mais tarde, que o modelo era quase universal, predominantemente asilar e manicomial, com milhares de pessoas abandonadas em macroinstituições financiadas pelo poder público, fossem elas públicas ou privadas. Na época os leitos privados já eram mais de 70 mil, todos pagos pelo setor público.

O ano de 1978 foi importante também pela chegada ao Brasil de Franco Basaglia, o psiquiatra italiano que fundou o Movimento da Psiquiatria Democrática e liderou as mais importantes experiências de superação do modelo asilar-manicomial em Gorizia e Trieste. Ele foi o primeiro a colocar em prática a extinção dos manicômios, criando uma nova rede de serviços e estratégias para lidar com as pessoas em sofrimento mental e cuidar delas. O caráter revolucionário dessa nova forma de cuidado estava expresso não apenas pelos novos serviços que substituíam os manicômios, mas pelos mais variados dispositivos de caráter social e cultural, que incluíam cooperativas de trabalho, ateliês de arte, centros de cultura e lazer, oficinas de geração de renda, residências assistidas, entre outros.

A experiência de Basaglia serviu de inspiração para a lei 180, aprovada na Itália em 13 de maio de 1978, que determinou a extinção dos manicômios e a substituição do modelo psiquiátrico por outras modalidades de cuidado e assistência. A Lei Basaglia, como ficou conhecida, é, ainda hoje, a única no gênero em todo o mundo.

Para nós a vinda de Basaglia ao Brasil naquele ano de 1978 foi considerada a "sorte grande". E ele retornou ao país no ano seguinte, quando fez uma visita ao Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais, um dos mais cruéis manicômios brasileiros. Suas visitas seguidas acabaram produzindo uma forte e decisiva influência na trajetória de nossa reforma psiquiátrica. Em Barbacena, Basaglia comparou a colônia de alienados a um campo de concentração, reforçando nossas denúncias de maus-tratos e violência. Sua presença aqui recebeu tratamento e atenção especiais da imprensa, além de dar origem ao clássico documentário de Helvécio Ratton, Em nome da razão, de 1980, um marco da luta antimanicomial brasileira, ao lado de uma premiada série de reportagens de Hiran Firmino, publicadas inicialmente no jornal Estado de Minas e posteriormente pela Editora Codecri sob o título Nos porões da loucura, de 1982.

A principal conseqüência da relação com Franco Basaglia, entretanto, ocorreu em 1989, em Santos. Após uma série de mortes em uma clínica psiquiátrica particular conveniada ao extinto Inamps, a prefeitura decidiu intervir e desapropriá-la, iniciando um trabalho revolucionário semelhante àquele de Franco Basaglia na Itália. Em seu lugar foram implantadas novas maneiras de lidar com pessoas em sofrimento psíquico, como os núcleos de atenção psicossocial (Naps) abertos 24 horas, sete dias por semana. Foram criadas oficinas de trabalho para geração de renda dos ex-internos, além de cooperativas de trabalho e de diversos projetos culturais de inserção social, entre os quais merece destaque o Rádio e TV Tam Tam.
Ainda em 1989, o deputado federal Paulo Delgado apresentou o projeto de lei de sua autoria (3657/89), cuja justificativa fazia menção explícita à lei italiana 180. Tudo levava a crer que o projeto seria aprovado num piscar de olhos, mas não foi. As associações dos proprietários de hospitais perceberam o risco que a lei representava para seus negócios milionários e organizaram lobbies em Brasília. Além disso, alarmaram os parentes dos internos (em geral tão carentes e desassistidos quanto a maioria da população), fazendo-os crer que os pacientes seriam devolvidos - da noite para dia - caso o projeto de lei fosse aprovado. O tiro, no entanto, saiu pela culatra. O debate acabou repercutindo positivamente na opinião pública. A mais antiga associação de parentes e usuários, a Sosintra, do Rio de Janeiro, tomou a frente na defesa da reforma psiquiátrica e fortaleceu a posição contra os manicômios. Leis do mesmo tipo foram aprovadas em diversos estados. Experiências de desmontagem de estruturas manicomiais passaram a ser implantadas pelos quatro cantos do país. A transformação do modelo virou prática política e social antes mesmo de virar lei, a despeito do fato de muitas das experiências não vingarem no Brasil. A da reforma psiquiátrica veio a reboque das práticas inovadoras que a anteciparam.

A Lei Paulo Delgado acabou sendo rejeitada, mas, em compensação, foi aprovado um substitutivo que aperfeiçoou muitos aspectos do modelo assistencial psiquiátrico brasileiro. Atualmente o país conta com quase mil serviços de saúde mental abertos, regionalizados, com equipes multidisciplinares, envolvendo vários setores sociais e não apenas o setor da saúde. Um grande avanço, sem dúvida.

Reforma em risco
Contudo, a política nacional de saúde mental corre muitos riscos, entre os quais reduzir o processo de reforma psiquiátrica a uma mera mudança de modelo assistencial. Trata-se de um processo social complexo, no qual é necessária uma reflexão sobre o modelo científico da psiquiatria, que não consegue ver saúde nas pessoas, apenas doenças. A dimensão sociocultural também é muito importante, pois trabalhamos para transformar a relação da sociedade com as pessoas em sofrimento mental. Afinal fomos nós, alienistas/psiquiatras, que, desde Pinel, ensinamos a todos que pessoas com algum tipo de problema mental são perigosas, incapazes, insensatas... Quando uma sociedade defende que uma parte dos seus membros não pode conviver com os demais, cumpre a nós compreendermos os motivos e intervir. Por que não podem viver como nós, conosco, em nosso meio? Por que são negros? Por que são índios? Por que são loucos?

Desde 1986, quando participamos do III Encontro Latino-Americano de Alternativas à Psiquiatria, em Buenos Aires, adotamos o lema "Por uma sociedade sem manicômios". O Movimento Nacional de Luta Antimanicomial nasceu aí. E tem alcançado êxitos fantásticos, que vão da criação de novas leis, práticas e políticas até a sensibilização da cultura nacional por meio de várias estratégias, como a produção de vários filmes, entre eles Bicho de 7 cabeças, de Laís Bodansky (2000), baseado no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano; Estamira, de Marcos Prado (2004), ou ainda Estrela de 8 Pontas, de Marcos Magalhães (1996). Sem falar do Grupo Teatral Pirei na Cena, da TV Pinel, da Rádio Cala a Boca Já Morreu, da Rádio Antena Virada, do Grupo Teatral Ueinz! e do Coral Cênico de São Paulo entre outras iniciativas.
O grande mérito do processo brasileiro de reforma psiquiátrica está no fato de, em vez de tratar de doenças, tratar de sujeitos concretos, pessoas reais. Lida, portanto, com questões de cidadania, de inclusão social, de solidariedade e, por isso, não é um processo do qual participam apenas profissionais da saúde, mas também muitos outros atores sociais.

O hospício, ou manicômio, caminha inevitavelmente para o fim devido a seu caráter arcaico de instituição fundada há mais de 300 anos para responder a outras demandas sociais. Sua persistência está muito mais relacionada ao fator econômico do que ao valor terapêutico ou social. Os hospícios, como já nos ensinou Simão Bacamarte, devem ser fechados. Esse deve ser o destino de todas as Casas Verdes, mesmo das que se escondem atrás de discursos progressistas. Quem nos garante que o alienado não é o alienista? A frase de Caetano Veloso "de perto ninguém é normal" tem sido pretexto para questionarmos o conceito de normalidade, tão caro no campo da saúde mental. Curiosamente, a mesma frase foi utilizada em um congresso de psiquiatria em São Paulo para demonstrar como toda a sociedade é, no fundo, carente de algum tipo de terapêutica (leia-se de medicamentos, cujo fabricante financiava o evento).

Tenho observado que os órgãos de representação da categoria médica e dos psiquiatras começam a resistir à idéia da reforma psiquiátrica. Isso me parece totalmente equivocado. Os profissionais comprometidos com a boa prática médica não podem esquecer que, certa vez, se aliaram aos proprietários de hospitais e se tornaram subempregados, funcionários desqualificados, mal pagos e desrespeitados. Não podem esquecer também que se aliaram, outra vez, aos empresários de seguro-saúde, e deles se tornaram escravos, sem autonomia profissional e sem controle sobre as possibilidades terapêuticas. Em que pesem todos os problemas e limitações, é no SUS que ainda podemos, não apenas médicos, mas todos os profissionais do setor, realizar as possibilidades reais da saúde em nosso país. Seja porque o SUS é o maior e mais promissor mercado de trabalho nessa área (e não se iludam quanto a isso), seja porque é o mais democrático e inclusivo sistema de saúde público do mundo. Aceito cartas com argumentações que provem o contrário ou que me provoquem a pensar de forma distinta.
Para conhecer mais
Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Franco Basaglia. Garamond, 2005.

A reforma psiquiátrica. Manuel Desviat. Editora Fiocruz, 2006.

Esperança equilibrista: cartografias de sujeitos em sofrimento psíquico. Maria Bernardete Dalmolin. Editora Fiocruz, 2006.

Manicômios, prisões e conventos. Erving Goffman. Perspectiva, 1961
Paulo Amarante é psiquiatra, doutor em saúde pública, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), ambas no Rio de Janeiro. É autor de Loucos pela vida - A reforma psiquiátrica no Brasil (Editora Fiocruz, 2005), membro da diretoria do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e editor da revista Saúde em Debate.

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