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quinta-feira, 24 de março de 2011

“Quem ama não mata”.

Crime passional: quando o ciúme mancha a paixão de sangue
INTRODUÇÃO
A história da humanidade sempre foi marcada por crimes cometidos em função de um amor devastador mitigado por um ciúme doentio. Otelo, personagem da literatura clássica, ao retirar a vida de sua esposa Desdêmona por acreditar que esta lhe era infiel, transforma-se em um referencial de homicida passional.
Em meio a essa explosão de sentimentos, o presente estudo objetivou explanar acerca dos denominados crimes passionais, quais sejam os cometidos por paixão em sentido estrito. Quando o ciúme atinge seu auge, subtraindo de forma inesperada e precoce a vida de um ser, existirá justificativa?
Na busca por essa resposta, iniciou-se a pesquisa delimitando a amplitude jurídica da expressão crime passional, procedendo à verificação das proporções que alguns sentimentos, em especial o ciúme, podem assumir dentro de um indivíduo, a ponto de lhe retirar, inteira ou parcialmente, a percepção de certo e errado ou sua capacidade de se determinar de acordo com esse entendimento.
Por derradeiro, questionou-se ainda se o homicida passional não seria somente mais uma vítima das circunstâncias, inebriado pela gama de fortes sentimentos que o atormentam levando-o a cometer o fatídico ato e, se nesse casso, o recolhimento ao cárcere seria realmente a sanção mais adequada.
2 HOMÍCIDIO PASSIONAL
Dentre as várias espécies de homicídio, merece destaque o passional, por se tratar de um crime diferenciado, onde uma erupção sentimental é levada a efeito.
O vocábulo passional vem do latim passionalis, de passio, que quer dizer paixão.
De acordo com esta definição todo ilícito seria, em tese, passional, uma vez que deriva de paixão em sentido amplo. Contudo, em linguagem jurídica, porém, convencionou-se chamar de ‘passional’ apenas os crimes cometidos em razão de relacionamento sexual ou amoroso (ELUF, 2003, p. 111).
Não obstante, de acordo com o critério de classificação das paixões de Enrico Ferri (2001, p. 38), delito passional seria aquele cometido por um criminoso de ocasião, movido por uma paixão social, assim entendida como aquelas que favorecem e comentam a vida fraterna e solidária e que, por uma aberração momentânea, [...] conduzem aos excessos do delito.
Dessa forma, há uma clara delimitação da abrangência do termo passional para efeitos jurídicos, não bastando, pois, simplesmente paixão para configurar um delito passional.
2.1 Elementos Desencadeadores
Por mais que cientificamente se tente definir o ser humano como eminentemente racional, é inegável o poder dos sentimentos.
Nesse contexto, o estudo do tema torna-se ainda mais instigante na medida em que se verifica que os tormentosos devaneios sofridos pelos passionais, não raramente, possuem conotações patológicas.
Assim, com o fim precípuo de fornecer maiores subsídios, necessários para uma melhor compreensão acerca da matéria, destacar-se-ão a seguir os principais sentimentos capazes de transmutar um indivíduo qualquer em um homicida passional em potencial.
2.1.1 Ciúme
Ao adentrar no jardim do amor, muitos se machucam com os espinhos dos florais, isto é, o ciúme, sentimento que surge da insegurança, medo da perda, dependência e síndrome da inferioridade e que é considerado por muitos, como desagregador, já que enfraquece ou até mesmo destrói a harmonia existente entre o casal, desgastando a relação.
A despeito disso, em uma visão romântica, o ciúme também é considerado o tempero do amor, razão pela qual, em enquete realizada recentemente em uma Instituição de Ensino Superior, 50% dos entrevistados acredita que sentir ciúmes está diretamente ligado a ideia de amar.
Na verdade, o ciúme deriva de um conglomerado de sentimentos, isto é, a noção de propriedade se agrega a de afeição, o medo, a ansiedade e a angústia, que já se prenunciam como sentimentos básicos, darão o tom de aflição e sofrimento que acompanham o sentir ciúme. (FERREIRA-SANTOS, 2003, p. 19).
Alguns estudiosos consideram que este sentimento nasce do desejo exclusivista em relação ao amor de determinada pessoa, sendo, portanto, inato e universal. Sob o ponto de vista médico, o ciúme pode aparecer como uma manifestação de algum tipo de doença que compromete o psiquismo humano.
Tendo como base as pesquisas de Freud e alguns de seus seguidores, o ciúme pode ser classificado em três categorias: normal, neurótica e paranoide.
A primeira tem origem em mecanismos de proteção inconscientes, como a projeção, onde o ciumento transfere para a outra pessoa seu próprio desejo de infidelidade ou até mesmo sua atração homossexual pelo rival. Via de regra, esse tipo de ciúme é efêmero, contudo, de acordo com a autoestima da pessoa ciumenta, ele pode ser mais duradouro, chegando a atingir o nível do intolerável.
Já o ciúme neurótico tem suas raízes no Complexo de Édipo, onde a criança sente-se excluída da relação que, até então, mantinha com a mãe por conta da presença do pai, que se apresenta como um terceiro a ameaçar sua exclusividade.
Nesse contexto, o ciumento teme constantemente ser novamente excluído, à semelhança do que ocorreu na infância, o que configura um verdadeiro Complexo de Exclusão.
Enquadra-se perfeitamente nessa categoria o pensamento de Thomas Hobbes (2002, p. 50), quando este afirma que o ciúme é o amor junto com o receio de que esse amor não seja recíproco. (grifo nosso).
Por fim, tem-se a categoria paranoide que se consubstancia no ciúme em sua forma mais delirante, onde a pessoa tem absoluta certeza de que está sendo traída.
Tal classificação apresenta extrema relevância pragmática, uma vez que, para a psiquiatria, tanto o ciúme neurótico quanto o paranoide são considerados patológicos (informação verbal). [1]
Porém, é necessário ressaltar que cada ciumento sofre ao seu modo. Algumas pessoas são mais ciumentas que outras, sendo que, a depender do indivíduo e da situação vivenciada, o ciúme pode tomar uma porção considerável de suas vidas, fugindo do controle.
 Em virtude disso, o personagem literário Otelo é alertado por Iago: Mas que minutos infernais não conta quem adora e duvida, quem suspeitas contínuas alimenta e ama deveras (SHAKESPEARE, 1997, p. 78).
Pela análise do trecho acima, é possível perceber em Otelo traços de um ciúme doentio, que o leva a imaginar que está sendo traído a todo tempo. A esse tipo de exteriorização do ciúme com conotações patológicas, psiquiatras ingleses deram o nome de Síndrome de Otelo, que é cada vez mais comum na sociedade capitalista e que pode levar o indivíduo ao suicídio e/ou assassinato.
É sabido que alguns ciumentos têm conhecimento que padecem desse mal, porém, a simples ciência de que o seu ciúme ultrapassa as raias do socialmente aceito, de nada adianta.
Nesse diapasão, Roland Barthes (1981, p. 47) traz: como ciumento sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo em sê-lo, porque temo que meu ciúme magoe o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade. Sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.
Sendo assim, é possível perceber que o ciúme, uma vez que se apossa do indivíduo, exerce sobre este grande domínio, sendo relevante frisar que, para o ciumento o que importa não é o que verdadeiramente se deu, mas sim o que ele acredita que ocorreu.
Assim, constata-se que esse mecanismo emocional patológico destrói a tranquilidade da alma, de maneira que o ciumento duvida de si mesmo, sendo, portanto, devorado por sua imaginação obsessiva.
2.1.2 Paixão
A paixão é a efemeridade e a intensidade. Assim, em sua origem, guardaria certas semelhanças com o amor manso e terno. Mas, num segundo momento, pode atingir proporções catastróficas quando inebriada pelo ciúme, parasita do relacionamento, que suga toda a doçura dos apaixonados e os transforma em meros perseguidores da satisfação de sua lascívia.
Esse sentimento tem o condão de adormecer o lado racional do indivíduo, fazendo com que perca os parâmetros de ética e moral, deixando-o cego a tudo que diz respeito ao mundo exterior.
Nessa mesma linha de raciocínio caminha o pensamento da advogada criminalista e professora universitária Renata Bonavides (2009, p.77): No seres humanos imputáveis, as paixões, como as emoções intensas, se tornam muitas vezes elementos perturbadores da inteligência e da vontade, reduzindo em muitas oportunidades a racionalidade, podendo levar o indivíduo ao cometimento de um crime.
Dessa forma, percebe-se que o homem alvo desse sentimento avassalador, abandona a sensatez e passa a agir como fantoche da paixão. Em seu interior há uma erupção emocional, na qual se funde posse, dependência, dor, amor e compulsão, de forma tal que ele já não é capaz de distinguir o que de fato sente.
Em razão do poder irresistível desse sentimento, quando o ciúme o corrói, destruindo-o em sua base, traz consigo a dor do fim e a saudade do que se foi e jamais voltará a ser.
2.1.3 Amor
A princípio, quando se fala em amor, o cérebro humano imediatamente faz remissão a um sentimento terno e generoso, que despertou o interesse de leitores do mundo todo, como a forma mais nobre e sublime de tudo que existe na Terra.
O psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos (2003, p. 185) explica que o amor é um sentimento arrebatador, que enche nosso coração de encanto e admiração [...], que invade a razão e despreza seus alertas, que nos cega, nos ensurdece, nos contamina por inteiro, que torna tudo mais bonito e mais suportável [...].
No amor verifica-se uma situação paradoxal, na qual duas pessoas, unidas por sua liberdade, se tornam uma só e, sem prejuízo disso, continuam sendo duas, mantendo, assim, intacta sua individualidade.
Todavia, em muitos casos, o indivíduo apresenta um comportamento nitidamente patológico, na medida em que não consegue mais admitir vida sem o outro, restringindo totalmente sua independência. É o que se chama codependência do amor, tratando-se, pois, de uma doença que possui como principal sintoma a perda da identidade.
Por isso a afirmação de que, apesar de ser o mais presente e determinante dos sentimentos, o amor pode ser a mais terrível e cruel das paixões (LYRA, s.d.). Quando o indivíduo se doa de corpo e alma à pessoa amada, transformando esse sentimento em uma verdadeira obsessão, os sofrimentos oriundos de sua perda tornam-se gigantescos, a ponto de ser impossível rivalizar seus efeitos com os de qualquer outro sentimento.
2.1.4 Rejeição
De acordo com o Dicionário Aurélio (2008), rejeição é o ato ou efeito de rejeitar, que por sua vez significa lançar fora, repelir, repudiar.
Trata-se, portanto, de um dos mais terríveis sentimentos experimentados pelo ser humano e, quando aliada a dor da alma, como Sócrates definiu o ciúme, pode culminar em ações autodestrutivas, assim entendidas como o suicídio e o crime passional. Afinal, nesse último, quando se mata o objeto de sua idolatria se destrói a si mesmo.
Dessa forma, tem-se que o indivíduo passa a sentir que a recompensa por todo o amor e verdadeira idolatria prestados à posterior vítima, é o abandono, a traição, e transmuta a paixão e o amor, em sentimentos revoltosos e cavilosos, intentando e ansiando pelo momento em que o outrora detentor de seus mais nobres sentimentos, prove da dor e dos sentimentos que tanto o atormentam e o assolam. (FERREIRA, 2007, s.p).
Verifica-se assim, que esse sentimento faz acordar o monstro que todos têm dentro de si, aflorando uma fera que anseia por vingança e que, em alguns casos, não é detida nem mesmo pelos freios impostos pela sociedade, dada as dimensões da devastação interior sofrida pelo indivíduo.
Diante da rejeição, o amante age como se fosse dono e senhor do ser amado, dentro de um egoísmo desmedido, que responde com ódio e agressividade às suas frustrações.
2.1.5 Sentimento de posse
O conceito de posse está intimamente vinculado ao direito de controlar e dispor das coisas e pessoas (sejam elas casas, carros, terras, mulheres ou maridos) e, portanto, leva a sensação de poder. Esse poder, a bem da verdade, é muitas vezes irreal [...]. (FERREIRA-SANTOS, 2003, p. 133).
Destarte, a partir do instante em que o desejo de dominar os sentimentos do outro foge do controle, surge uma cogente inclinação para a posse.
Com efeito, na nossa sociedade é muito mais importante o ter do que o ser, o que leva a conclusão de que a pessoa tem de possuir para poder ser. Assim, torna-se vital para a consciência de ser a posse do outro, sendo que não possuir,ou perder, representa não serou deixar de existir.
O sentimento de posse pode nascer do amor sexual e, sendo assim, será movido primordialmente por um desejo carnal, o que torna totalmente intolerável a ideia de que o objeto de seu desejo possa vir a se relacionar intimamente com outras pessoas.
Nesse mesmo sentido apresenta-se a assertiva a seguir: O amoroso deseja sua amante só para ele, quer gozar a sua posse, saborear todo o seu corpo, toda a sua alma, embriagar-se com essa propriedade que se lhe oferece. (RABINOWCZ, 2000, p 79).
Contudo, a posse também pode ter sua origem reputada ao ciúme, ou seja, na ameaça de perder o que supostamente se possui.
Esse sentimento de propriedade em relação ao outro pode ser experimentado tanto por homens quanto por mulheres, entretanto, em virtude do patriarcalismo esse sentimento passou a ser intrínseco do sexo masculino, sendo raros os casos registrados na literatura de mulheres que consideravam o parceiro apenas como um mero objeto.
2.1.6 Honra
De origem latina, deriva da palavra honror e trata-se do reflexo social da dignidade, estando relacionada a valores éticos e morais.
A honra se subdivide em objetiva e subjetiva, sendo que esta é a opinião que a pessoa tem de si mesmo e aquela, a ideia que a sociedade faz do indivíduo.
É pacífico que a honra é de suma importância para uma vida digna. Isto se verifica desde a antiguidade, época em que representava para os homens confiabilidade e para as mulheres pureza e virgindade.
Assim, diante de sua importância para a vida em sociedade, o direito buscou tutelá-la e o fez de diversas formas.
Primeiramente, a Constituição Federal, Lei Maior em um Estado Democrático de Direito, revestiu a honra da proteção conferida aos direitos e garantias individuais, transformando esta tutela em cláusula pétrea, prevista no inciso X, do artigo 5º.
A legislação infraconstitucional também resguardou a honra, tipificando como crime a calúnia, a difamação e a injúria, condutas descritas respectivamente, nos artigos 138, 139 e 140, do Capítulo V, do Código Penal.
Dessa forma, resta claro que as ofensas à honra podem ocorrer de diversas formas, sendo muito difícil consubstanciá-la, dado seu elemento subjetivo, o que deve então ser analisado de acordo com o caso concreto.
2.2 Perfil do Criminoso Passional
Feitas as considerações acima, passa-se agora a análise do perfil passional.
O primeiro a distinguir o criminoso passional ou delinquente de ímpeto ou de paixão dos demais criminosos foi Cesar Lombroso. Contudo, os estudos mais importantes e aprofundados sobre estes indivíduos são de Enrico Ferri, expoente da Escola Positiva.
Em seus estudos, Ferri verificou que a jurisprudência clássica se ocupava apenas com o crime e as circunstâncias em que este ocorreu, esquecendo-se do quão relevante são as características pessoais do agente, mormente em um delito passional.
Compartilhando deste mesmo entendimento, Evaristo de Moraes (1933, p. 60) afirma que é de fato, o crime que se pune, mas é considerando cada indivíduo que se escolhe a medida conveniente, [...] é preciso atender aos caracteres particulares do delinquente, aos seus antecedentes, a sua situação na família, a educação recebida, ao meio em que viveu.
Assim, convicto da importância dessa análise psicológica, Ferri (2001, p. 20) buscou estabelecer padrões de comportamento, traçando características comuns a este delinquentes, conceituando-os da seguinte forma: delinquente passional é aquele, antes de tudo, movido por uma paixão social. Para construir essa figura de delinquente concorre a sua personalidade de precedentes ilibados, com os sintomas físicos, entre outros, da idade jovem, do motivo proporcionado, da execução em estado de comoção, ao ar livre, sem cúmplices, com espontânea apresentação a autoridade e com remorso sincero do mal feito, que frequentemente se exprime com o imediato suicídio ou tentativa séria de suicídio.
A partir deste estudo, verificou-se que a legião passional é formada por criminosos de ocasião, isto é, indivíduos pacatos que possuem uma conduta honesta e impecável, mas que em função da situação vivenciada agem de forma violenta, descarregando toda a agressividade acumulada ao longo dos anos.
Assim, em razão da conduta agressiva ser, via de regra, fruto da vivência de uma situação limite, estes agentes dificilmente reincidem, sendo, portanto, desprovidos quase que totalmente de qualquer periculosidade social.
Observa-se, ainda, pela análise de casos passionais reais, que boa parte daqueles que agem no calor das emoções e que se encontram atormentados por seus próprios sentimentos manifestam profundo arrependimento logo após o crime.
Em suma, é possível afirmar que o perfil passional compõe-se das seguintes características: indivíduo primário, com vida pregressa imaculada e que, salvo raríssimas exceções, não reincidem, demonstrando sincero arrependimento após o crime.
2.3 Vitimologia
Em que pese o crime passional ser impulsionado por uma violenta emoção, capaz de levar um indivíduo pacífico ao desatino de cometer atos que jamais se julgou capaz, transformando-o, assim, em um homicida passional, é necessário destacar que para a ocorrência deste crime concorrem muitas outras causas além deste violento sentimento.
Neste contexto, ganha especial relevância o estudo da vitimologia iniciado no século passado através das pesquisas de Benjamim Mendelsohn, advogado israelense, que num Simpósio sobre este tema realizado em 1973, a definiu como estudo científico das vítimas do delito (NASCIMENTO, 2003, p. 155).
A palavra vítima vem do latim victimia, que quer dizer vencido e diz respeito ao sujeito passivo do delito, isto é, aquele que sofre as consequências do ato criminoso.      
Entretanto, não obstante a posição de hipossuficiência frente ao agressor sugerida pelo significado do vocábulo, a análise de casos passionais reais revela um dado interessante, frequentemente o comportamento da própria vítima é fator determinante do crime.
Neste sentido, Amaral (2009) entende que, na maioria das vezes, a vítima desempenha um papel importantíssimo para sua própria vitimização, em especial em situações que envolva ciúme, paixão ou qualquer outra emoção concentrada. Às vezes, sua contribuição para o evento não é no sentido de provocar ou estimular o agressor, mas por uma imprevisão, por falta de avaliação das condições ou por inexperiência, a vítima acaba se envolvendo numa situação claramente de risco (informação verbal). [2]
Assim, atento a essa realidade, o legislador elencou no artigo 59 do Código Penal, entre as circunstâncias judiciais a serem analisadas pelo juiz no momento da aplicação da pena, a conduta da vítima.
A partir da redação do artigo supra citado, extrai-se o entendimento de que o legislador não só reconheceu a possibilidade de a vítima influir no resultado final do evento danoso, quanto estabeleceu uma relação inversamente proporcional entre este grau de influência e a responsabilidade do autor, relação esta que justifica a importância do estudo da vitimologia à luz do delito passional.
3 A Culpabilidade e o criminoso passional
Antes de adentrar no cerne deste estudo, é indispensável a apresentação de uma definição jurídica de culpabilidade, para que ao fim se possa entender em quais situações ela poderá ser afastada.
O legislador, ciente da dificuldade em conceituá-la, deixou essa tarefa a cargo da doutrina que com maestria a executou.
Dessa forma, o ilustre doutrinador Régis Prado (2006, p. 408) define culpabilidade como reprovabilidade pessoal pela realização de uma ação ou omissão típica e ilícita. Assim, não há culpabilidade sem tipicidade e ilicitude, embora possa existir ação típica e ilícita inculpável.
Ressalta-se que este juízo de reprovação a ser feito em face de quem pratica um fato típico e antijurídico merece uma atenção especial do operador do direito, mormente quando se tratar de um delito passional, onde diversos elementos de cunho subjetivo encontram-se presentes, devendo ser cuidadosamente analisados e valorados.
 Em meio a isso, Bonavides (2009, p. 92) afirma com clarividente razão que o olhar do Direito Penal ao criminoso passional deve estar sempre atento às características de cada caso concreto.
Feitas essas ponderações, acrescenta-se que são elementos da culpabilidade, enquanto juízo axiológico, a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude do fato e a exigibilidade de conduta diversa.
Todavia, verifica-se que na seara passional, dentre os elementos acima, ganha especial destaque o estudo da imputabilidade penal.
3.1 A imputabilidade como causa excludente da culpabilidade
A imputabilidade penal nada mais é do que a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se autodeterminar de acordo com este entendimento.
Ressalta-se que este conceito é derivado de uma interpretação indireta do que prescreve o artigo 26 do Código Penal e seu parágrafo único.
Ciente disso, frise-se mais uma vez que a imputabilidade consubstancia-se em um componente do juízo de censurabilidade, razão pela qual sua ausência implica na exclusão da culpabilidade do agente.
Manifestando-se acerca dessa relação entre a imputabilidade e a culpabilidade, Magalhães Noronha (2001, p. 165) leciona que a imputabilidade é elemento da culpabilidade. Faltando ela, esta desaparece ou, pelo menos, é atenuada.
Feitas essas considerações, será que se pode afirmar que o indivíduo inebriado por um ciúme doentio, que mata o objeto de seu desejo impulsionado por devaneios e ideias surreais, em meio a uma névoa de sentimentos tormentosos era, ao tempo da ação, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito de sua conduta e, entendendo, se autodeterminar de acordo com este entendimento?
3.2 O criminoso passional como vítima de um mecanismo patológico
O estudo de casos passionais reais traz à tona uma situação importante e, até o presente momento, desconsiderada por grande parte do mundo jurídico, muitos destes criminosos de ímpeto apresentam uma passionalidade doentia.
Com efeito, não raras vezes, os elementos fomentadores deste crime, especialmente o ciúme, quando levam o indivíduo ao extremo de ceifar a vida do parceiro possuem conotações nitidamente patológicas.
Em função disso, Ferri (2001, p. 36) afirma com propriedade quando o ímpeto da paixão for, na realidade, tão forte, tão veemente, [...] força irresistível, não pode subsistir responsabilidade ou imputabilidade penal.
Em que pese o pensamento exarado acima, como já ressaltado anteriormente, o nosso atual Código Penal, em seu artigo 28, inciso I, não considera como causa excludente da imputabilidade a emoção e a paixão, qualquer que sejam.
Todavia, fazendo uma interpretação sistemática deste artigo com o 26 e seu parágrafo único, é inevitável a conclusão de que, quando estes estados emocionais tiverem cunho patológico, o agente estava no momento da ação, ao menos, dotado de perturbação da saúde mental, estado que acarreta a atenuação de sua imputabilidade penal, culminando no que se denomina semi-imputabilidade. 
Outrossim, José Hamilton do Amaral (2009) quando indagado se o ciúme patológico seria capaz de suprimir, ainda que parcialmente, a capacidade do indivíduo de entender ou de determinar-se de acordo com este entendimento assevera que, se a lei penal admite como atenuante a violenta emoção, não há como não reconhecer que uma situação claramente patológica pode limitar, ou até mesmo excluir, a imputabilidade penal (informação verbal). [3]
Dessa feita, em que pese a omissão legislativa ao não tratar de forma específica e direta do agente que mata impelido por uma emoção patológica, qualquer que seja, é notório que este tem suprimido o seu real discernimento, não podendo ser responsabilizado como um criminoso qualquer.
3.3 A necessidade de um tratamento penal diferenciado
Uma vez comprovado que o ciúme patológico, assim como qualquer outro mecanismo emocional que tenha conotação doentia, é fator indicativo de perturbação mental e, quiçá, de uma doença mental, o criminoso de ímpeto, quando verificada essa circunstância por meio de perícia multidisciplinar, não pode ser apenas recolhido ao cárcere, pois dessa forma a pena não estaria atingindo seu fim ressocializador e humanitário.
Já dizia Cesare Beccaria (1997, p. 52) o fim da pena, pois, é apenas o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo. É, pois, necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicá-las, de tal modo que, conservadas as proporções, causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens, e a menos tormentosa no corpo do réu.
Ora, é clarividente que estes indivíduos necessitam de um tratamento especializado, devendo ser acompanhados por psiquiatras, psicólogos e terapeutas. Outrossim, não se tratam de criminosos em potencial, tendo em vista o inexpressivo índice de reincidência nestes casos, o que, aliás, é uma das características que compõem o perfil passional, como já abordado.
Entretanto, é preciso salientar que a luta por um tratamento diferenciado não significa reforçar a impunidade, ao contrário, o que se almeja com essa implementação é, dentre outras coisas, proteger a sociedade de indivíduos que sofrem de perturbações mentais e que não estarão verdadeiramente aptos a voltar ao convívio social se a eles for imposta pura e simplesmente uma pena privativa de liberdade.
Em se tratando de indivíduos considerados pela perícia multidisciplinar totalmente inimputáveis, a previsão da aplicação da medida de segurança está contida no artigo 97 e no tocante a aplicabilidade dessa norma não há qualquer óbice.
De outra banda, quando for constatada a semi-imputabilidade, poder-se-ia dizer que, nesses casos, melhor seria a aplicação cumulada da medida de segurança com a pena privativa de liberdade. Contudo, com a reforma penal de 1984 aboliu-se essa possibilidade, que até então era cabível em decorrência da adoção do sistema duplo binário.
Dessa forma, verifica-se que o legislador pátrio, ao prever a substituição da pena privativa de liberdade, vedou a aplicação cumulativa dessa com a medida de segurança, adotando, assim, o sistema vicariante ou unitário.
Assim, ante a autorização prevista no artigo 98, quando no caso concreto se verificar que o criminoso passional, em razão de estado emocional patológico, é semi-imputável, o melhor entendimento é que deve ser substituída a pena privativa de liberdade que lhe seria aplicada por uma das medidas de segurança previstas no artigo 96.
Diante do exposto, verifica-se que o indivíduo que comete um crime movido por uma emoção patológica, mormente o ciúme, em uma relação de codependência e que foi considerado inimputável ou semi-imputável, merece um tratamento penal diferenciado, com a aplicação de uma medida de segurança, sob pena de violação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena.
4 CONCLUSÃO
O crime passional diferencia-se dos demais pela gama de emoções envolvidas desde a cogitação até a sua execução.
É preciso atentar-se para o fato de que, sentimentos como o ciúme, podem atuar de forma tal sob determinadas pessoas, a ponto de transformá-las em uma bomba-relógio, prestes a explodir diante de toda e qualquer conduta, ultrajante ou não.
Isto ocorre porque muitos desses indivíduos, ao verem no outro a razão única de seu viver, perdem o controle de suas emoções e se tornam escravos dessa relação, numa nítida demonstração de codependência que pode culminar em uma perturbação ou, até mesmo, doença mental, o que lhes coloca na posição de semi-imputabilidade ou inimputabilidade, respectivamente.
Uma vez reconhecida essa condição, por meio de perícia multidisciplinar, é inaceitável que o agente seja levado ao cárcere como um criminoso ordinário, pois de nada adianta o reconhecimento da culpabilidade diminuída se isso não tiver reflexo na punição.
É certo que, a existência de mecanismos emocionais patológicos e a necessidade de tratamento especializado nesses casos, é fato incontestável pela medicina e pela psicologia. Contudo, infelizmente o atual Código Penal não regulamentou de forma específica essa situação.
Assim, diante dessa lacuna da lei, sugere-se como proposta de alteração legislativa a implementação do artigo 28 do Código Penal, que merece figurar com a seguinte redação: Art. 28. Não excluem a imputabilidade penal: I – a emoção ou a paixão, salvo quando patológica; Parágrafo único. Quando o agente agir impelido por um mecanismo emocional patológico, aplica-se o disposto no art. 26 e parágrafo único deste Código. [...] (grifo nosso).
Frise-se que, com a proposta elaborada acima, regulamentar-se-á de forma expressa a aplicação das regras previstas nos artigos 97 e 98 do Código Penal aos indivíduos codependentes, isto é, imposição de uma medida de segurança ao agente que mata sob o domínio de um mecanismo emocional patológico.
Todavia, isso não significa impunidade. Trata-se apenas de uma forma de conferir efetividade aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena.
É preciso que a sociedade se liberte da ideia limitada de que, cometido um crime, a única resposta estatal adequada é a imposição de uma pena privativa de liberdade. Ao Estado incumbe o dever de promover a justiça, que não existe quando se pune indistintamente!
A irracionalidade
dos crimes passionais
Assassinatos de mulheres no convívio familiar e a violência praticada contra elas por parte de maridos e namorados aumentam no Estado. Derivam do descontrole emocional, da perda de auto-estima, da imaturidade dos homens em lidar com a sensação de derrota, quando sentem-se abandonados, rejeitados. São 30 as mortes violentas contabilizadas pela polícia catarinense neste ano, envolvendo situações passionais.
O número pode parecer pequeno diante da grandiosa monstruosidade de casos revelados seguidamente pela mídia no plano nacional. Evidentemente que 30 mortes de jovens e senhoras em condição fértil só em 1999, por razões abjetas, significam média de quatro por mês. Ou uma por semana.
Se considerarmos que os dados estatísticos mostram apenas a face visível da fragilidade das relações sociais, já quando estão no limiar da absoluta desestruturação, o quadro apresentado por A Notícia na edição de ontem assume gravidade ainda maior. É que não ocorrem apenas os casos que vêm a público. A dimensão completa da violência humana jamais será conhecida.
O mundo subterrâneo das emoções e os desvãos de mentes intranqüilas e possessivas causam conflitos generalizados em todos os quadrantes, em ambientes sociais de diferentes matizes e não escolhem classe social para se espalhar. Os crimes contra as mulheres acontecem entre os miseráveis, os pobres, os remediados, os ricos. O dinheiro não poupa potenciais vítimas, quando falta o essencial: harmonia e entendimento.
A crise de valores morais, do que é certo ou errado, desemboca na ruptura agressiva dos mais elementares padrões de civilidade. E acaba por destruir a noção de casamento como instituição a ser respeitada e que tem de se embasar exatamente no respeito entre o par. Sem isso, não é possível acreditar no futuro com relacionamentos sadios.
Tal constatação remete-nos à pergunta inevitável: a sociedade que estamos criando permite que nossos filhos vejam o amor e a união como valores a serem vividos plenamente e a serem almejados? Não temos resposta pronta. Mas temos a certeza de que o apego excessivo ao individualismo acompanhado da prepotência autoritária nas relações interpessoais são exemplos negativos.
As mentes criminosas que arquitetam planos de assassinato contra mulheres precisam de tratamento. E de punição. Nada justifica matar em nome do ciúme. Nem o desvario. Nestes casos, a polícia tem pouco a fazer. A omissão de quem é reiteradamente humilhada e apanha, até um dia morrer, ajuda a manutenção da impunidade. E piora a situação degradante.
O melhor a ser feito é capacitar as profissionais das delegacias da mulher a trabalhar preventivamente. Seminários, encontros, reuniões com núcleos de psicólogos e terapeutas de casais são desejáveis. Podem instruir as mulheres a agir antes que desfechos dramáticos ocorram. Detectar possíveis focos de violência familiar antes que se efetivem diminuirão as ocorrências.
A sucessão de barbaridades só vai diminuir mesmo quando todos, todos mesmo, encontrarmos a paz de espírito capaz de viabilizar vida digna e pacífica nos lares. É impossível, dirão alguns. Se não começarmos a nos preocupar, certamente a criminalidade vai crescer ainda mais.

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