Buscamos incansavelmente a felicidade de viver plenamente com dignidade e não apenas sobreviver. Mas o sofrimento é uma experiência humana profundamente complexa que intervém na identidade e subjetividade da pessoa, bem como nos valores socioculturais e religiosos. O enfrentamento da dor exige analgésicos enquanto que o sofrimento solicita significado e sentido.
Negligenciar esta distinção é reduzir os tratamentos a sintomas e dores físicas, como se estes fossem a única fonte de angústias e sofrimentos para o paciente. É querer reduzir o sofrimento a um fenômeno físico, a ser dominado pela técnica.
O sofrimento tem que ser cuidado em quatro dimensões fundamentais:
- a) dimensão física: neste nível, a dor é um claro alarme de que algo não está bem no funcionamento normal do corpo;
- b) dimensão psíquica: surge freqüentemente ao enfrentar a inevitabilidade da morte. O agonizante perde as esperanças e os sonhos, com a necessidade de redefinir o mundo que está para deixar;
- c) dimensão social: é a dor do isolamento que surge no ser, obrigado a redefinir relacionamentos e necessidade de comunicação;
- d) dimensão espiritual: surge da perda do sentido, objetivo de vida e esperança. Todos necessitam de um horizonte de sentido – uma razão para viver e uma razão para morrer.
Pesquisas recentes, nos Estados Unidos, descobriram que o aconselhamento espiritual é uma das três necessidades mais solicitadas pelos doentes terminais e familiares.
Os paradigmas de curar e cuidar:
As ações de saúde hoje são sempre mais marcadas pelo paradigma da cura, facilmente prisioneiro da tecnologia, e caracterizado por cuidados críticos, intensivos, de medicina de alta tecnologia. Se algo pode ser feito, logo deve ser feito e se esquece que nem tudo o que é possível realizar cientificamente é eticamente admissível. Também pode-se idolatrar a vida física e alimentar a tendência de prolongar a vida em condições inaceitáveis. Este vitalismo ganha forma na convicção de que a inabilidade para curar ou em evitar a morte é uma falha da medicina.
A falácia desta lógica é que a responsabilidade de curar termina quando os tratamentos estão esgotados e não tendo mais cura, diz-se que “não se tem mais nada para fazer”. Um outro eixo de leitura, compreensão e cuidado é o paradigma do cuidado. O crescente interesse público em torno da eutanásia e suicídio assistido, chama nossa atenção para os limites de “cura” da medicina moderna. Cuidados de saúde sob tal paradigma aceitam o declínio, o envelhecimento e a morte, como parte da condição humana, uma vez que todos nós “sofremos” de uma condição que não tem cura, isto é, somos mortais. A medicina não pode afastar a morte indefinidamente.
Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu. Tempo de nascer e tempo de morrer..." Ecl 3, 1-2 O sofrimento humano somente é intolerável se ninguém cuida (Cicely Saunders)
A pergunta fundamental não é se vamos morrer, mas quando e como teremos que enfrentar essa realidade. Quando a terapia médica não mais preserva a saúde ou alivia o sofrimento, tratar para curar torna-se uma futilidade ou um peso e, mais do que prolongar vida, prolonga-se agonia. Surge então imperativo ético de parar o que é inútil e fútil, intensificando os esforços no sentido de proporcionar mais que quantidade, qualidade de vida frente à morte.
A ação de cuidar é multidisciplinar, procurando-se promover o bem-estar físico do enfermo, cuidando de sua dor e sofrimento; seu bem-estar mental, ajudando-o a enfrentar angústias, medos e inseguranças; seu bem-estar social, garantindo suas necessidades socioeconômicas e relacionais de ternura e seu bem-estar espiritual, pela vivência solidária e apoio nos valores da fé e esperança.
Cuidados Paliativos:
Ganha sempre maior apreciação, aceitação e viabilização prática na área da saúde, principalmente nos países desenvolvidos, a visão de que a medicina paliativa (cuidados paliativos, hospices) constitui a resposta que permite aos doentes terminais a morte digna. Antigamente, esperava-se a morte no leito domiciliar, e o doente era cercado de parentes, vizinhos, amigos e crianças. Aceitavam-se os ritos religiosos, cumpridos sem dramatização. A morte era algo familiar, próximo, e a pessoa sabia que estava morrendo. Hoje, ela é escondida, vergonhosa, como fora o sexo na era vitoriana.
É como se dissesse: “desculpem nossa falha técnica”. A boa morte atual é a morte repentina, mais temida na antigüidade, isto é, morrer sem perceber que se está morrendo. O objetivo dos cuidados paliativos é permitir aos pacientes e suas famílias, viver cada dia plena e confortavelmente, tanto quanto possível, e lidar com o stress causado pela doença, morte e luto. O seguimento e aconselhamento da família enlutada é também levado muito a sério no entendimento de que a morte não é problema para quem parte, mas para quem fica!
Cuidar dignamente do doente terminal significa respeitar a sua integridade, garantindo que suas necessidades básicas sejam honradas, entre outras:
Seja mantido livre de dor, tanto quanto possível, e que o sofrimento seja tratado;
receba contínuos cuidados e não seja abandonado;
Tenha o controle, o melhor possível, a respeito de informações e decisões sobre seu tratamento;
Seja ouvido e acolhido como pessoa, em seus medos, pensamentos, sentimentos, valores de fé e esperanças;
Possa escolher se despedir da vida onde achar melhor.
Dignidade de viver e morrer!
O desafio ético é considerar a questão da dignidade no adeus à vida, para além da dimensão físico-biológica e do contexto médico-hospitalar, integrando ao seu horizonte a dimensão sócio-relacional. A mídia alardeia casos que nos envolvem sentimentalmente e anunciam o direito do ser humano a uma morte feliz, sem sofrimento.
Qual o significado disso diante da morte violenta de milhares pela violência social?
Há muito a fazer para que a sociedade compreenda que morrer com dignidade decorre do viver dignamente. Antes do direito à morte humana, há que ressaltar o direito de que a vida, já existente, esteja conservada, preservada e plenamente desabrochada.
Isto é ter direito à saúde. É chocante e irônico constatar que a mesma sociedade a negar o pão para a vida humana, oferece alta tecnologia para o ser humano “morrer bem”. Não podemos passivamente aceitar a morte, quando é conseqüente do descaso pela vida. Frente a isso é necessário cultivar uma santa indignação ética. Podemos ser curados de uma doença mortal, mas não de nossa mortalidade. Quando esquecemos isso, caímos na tecnolatria e na absolutização da pura e simples vida biológica.
Procuramos a cura da morte, mas não sabemos o que fazer com quem se aproxima do adeus.
É a obstinação terapêutica (distanásia) adiando o inevitável, que acrescenta somente mais sofrimento e vida quantitativa mais que qualidade de vida. Nasce uma sabedoria a partir da reflexão, aceitação e assimilação do cuidado da vida no adeus final. Há a convicção profunda de não abreviar intencionalmente a vida (distanásia) de outrem, e a visão para não prolongar o sofrimento e adiar a morte (eutanásia). Entre o não abreviar e o não prolongar está o amarás.
É difícil amar o paciente terminal, com a gratuidade com que se ama um bebê, sem a exigência do retorno. Como fomos cuidados ao nascer, precisamos também ser amados ao morrer.
Leo Pessini.
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