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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

TRÁFICO DE MULHERES - Mortas pela máfia

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Oito brasileiras foram assassinadas este ano vítimas da exploração sexual no exterior. Aliciadores de 10 países atuam no território nacional. Investigação da Polícia Civil brasiliense mostrou o tamanho do esquema no Brasil. Ficou comprovado que o homicídio da ex-prostituta Letícia Mourão, 31 anos, em março deste ano, ocorreu a mando de uma organização criminosa dona de seis prostíbulos na Espanha.


  • Guilherme Goulart - Correio Braziliense


As organizações criminosas especializadas em tráfico de seres humanos mataram pelo menos oito brasileiras em 2009. Houve seis assassinatos na Espanha e um nos Estados Unidos. As vítimas são mulheres que deixaram o país para tentar a vida por meio da prostituição. O crime mais surpreendente, no entanto, ocorreu em território brasileiro, especificamente na capital do país. A morte de uma goiana no Guará revelou que as máfias europeias vinculadas à prostituição internacional não temem a segurança nacional. E dão ordens para aliciadores tirarem a vida daqueles que as ameaçam.

Investigação da Polícia Civil brasiliense mostrou o tamanho do esquema no Brasil. Ficou comprovado que o homicídio da ex-prostituta Letícia Mourão, 31 anos, em março deste ano, ocorreu a mando de uma organização criminosa dona de seis prostíbulos na Espanha. Órgãos federais e estaduais também têm informações de que aliciadores de outros 10 países — Portugal, França, Suíça, Irlanda, Holanda, Bélgica, Reino Unido, Israel e Estados Unidos — têm influência dentro das fronteiras brasileiras. Movimentam dinheiro, convencem novas vítimas e matam, se preciso.

Goiás aparece como o estado que mais exporta brasileiros. Há 250 mil goianos no exterior. Boa parte vive da prostituição. Alguns voltam ao país como recrutadores. “Esses grupos criminosos são organizados e estruturados. Enviam pessoas principalmente para Espanha e Portugal, pela facilidade da língua, e para a Suíça. Depois, vêm de fora para dentro”, explicou o procurador da República Daniel de Resende Salgado, do Ministério Público Federal de Goiás. O órgão se dedica ao combate à prostituição internacional desde 2004. Atuou na condenação de 20 pessoas por exploração sexual no exterior.

Vulnerabilidade
A experiência no assunto levou o Ministério Público Federal goiano a traçar o perfil das vítimas e dos aliciadores (veja quadro ao lado). “Elas (as organizações mafiosas) elegem algumas prostitutas para voltar ao Brasil e fazer a propaganda positiva da vida no exterior. Usam a condição de vulnerabilidade das pessoas e trabalham com certa sutileza”, detalhou Salgado.

O problema no estado vizinho ao DF levou à criação da Assessoria de Assuntos Internacionais do Estado de Goiás. Desde 2000, o órgão, comandado por Elie Chidiac, presta assistência aos familiares e às vítimas de prostituição. O trabalho passa por três pilares: repressão, assistência e conscientização. “Só assim podemos fazer um escudo psicológico para conscientizar e alertar dos perigos que há neste meio”, explicou. Segundo ele, uma média de 20 goianos são assassinados por ano na Europa devido à exploração sexual.

A proposta da assessoria goiana segue a iniciativa do governo federal para combater a prostituição internacional a partir do Brasil. “Estamos focados em campanhas educativas, repressão e capacitação de profissionais”, disse o secretário nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior.



O alvo

A maioria das mulheres atraídas pelas máfias estrangeiras é goiana. Organizações criminosas internacionais
enviam aliciadores ao Brasil para convencê-las a viver da prostituição na Europa. Veja o perfil delas:

Têm entre 18 e 26 anos

O grau de instrução não passa do ensino fundamental

Não têm condições de arcar com pacotes de turismo sequer para um local no interior do país. Por isso, desembarcam endividadas na Europa

São de famílias de baixa renda, residentes na periferia. A maior parte é de cidades do interior de Goiás
Boa parte se encontra desempregada antes da partida para o exterior

A maioria tem um ou dois filhos, geralmente de pais diferentes

Tiveram relacionamentos frustrados



Três perguntas para

ELIE CHIDIAC,

chefe da Assessoria para Assuntos Internacionais do Governo de Goiás
Edilson Rodrigues/CB/D.A Press - 19/3/09
 
 

Além das máfias espanhola e russa, que organizações criminosas estrangeiras atuam no Brasil e para que países encaminham a mão de obra?
Itália, Portugal, França, Suíça, Irlanda, Holanda, Bélgica, Reino Unido, países da União Europeia em geral e do Oriente Médio, como Israel. Todos esses lugares mandam aliciadores para o Brasil e exploram a prostituição. Nos Estados Unidos, tem prostituição, mas nunca ouvimos ou registramos queixas de lá.

A ex-prostituta goiana Letícia Mourão foi assassinada em
Brasília em março deste ano, a mando de uma organização
criminosa da Espanha. Até que ponto esses grupos estão
organizados no Brasil?

As máfias mandam meninas que fazem parte da organização criminosa e esbanjam dinheiro, comprando casas, carros e dando dinheiro para a família. Não ficam na esquina oferecendo serviço lá fora. Compram os bens, às vezes pagos pelas próprias máfias, para fazer propaganda. Às vezes, contam com auxílio de cabeleireiros, agências de viagens, bancas de revistas, agências de modelo.

Letícia morreu ao denunciar exploração sexual e escravidão na Espanha. Casos de assassinatos, ameaças e intimidações contra ex-prostitutas brasileiras são comuns no Brasil?
Muitas famílias nos procuram e pedem ajuda para trazer essas meninas que estão sendo exploradas e querem sair desta vida. Às vezes, a família descobriu que o trabalho dela não era babá ou garçonete. Muitas estão desaparecidas, em especial nas ilhas de Mallorca, na Espanha. Acabaram jogadas no mar. Antes desse assassinato em Brasília, não havia notícias de assassinatos no Brasil. É um alerta. O assassino estrangeiro está atuando na nossa casa. Isso fere a soberania e a segurança nacional.

Em regime de escravidão


Regras impostas pelas organizações que exploram a prostituição incluem jornada de até 22 horas de trabalho e multas pesadas

  • GUILHERME GOULART - Correio Braziliense

Cadu Gomes/CB/D.A Press - 3/7/09
Lúcio Flávio, preso na semana passada, é acusado de ter recebido R$ 4 mil para matar brasileira que denunciou esquema de prostituição na Espanha
 

Jornada que em alguns casos chegam a 22 horas. Pagamento de 40 euros (cerca de R$ 120) por programa de 30 minutos —metade para a mulher, metade para o dono do prostíbulo. No máximo 45 minutos para descanso e alimentação em toda a labuta diária. E, por fim, multas em caso de atraso, cochilo ou rejeição de parceiro sexual. A rotina de trabalho de uma prostituta brasileira na Europa se aproxima da escravidão e lembra o século 19. Funciona de acordo com as ordens de organizações criminosas especializadas em tráfico de seres humanos e exploração sexual, que lucram principalmente com a mão de obra saída do Brasil.

A mais recente vítima dessas quadrilhas internacionais morava no Distrito Federal. A goiana Letícia Peres Mourão, 31 anos, morreu assassinada a tiro na capital do país ao denunciar esquema de prostituição de brasileiras à Justiça da Espanha. O Correio teve acesso ao depoimento dado por ela à polícia federal espanhola, em Tarragona, a 100km de Barcelona (veja fac-símile). A mulher desafiou a máfia local ao contar detalhes do horror vivido como garota de programa. “Soube que poderia descansar de quatro a cinco horas, que logo isso não ocorreu, trabalhando praticamente as 24 horas”, diz um dos trechos.

As declarações são de 15 de novembro de 2005. Foram confirmadas ao Juizado de Instrução nº 5 de Tarragona em 7 de abril de 2006. Letícia contou que não suportou as condições impostas pela organização. Ao ser apresentada a Miguel Arufe Martinez, o Antonio, dono do cabaré, aceitou passar 21 dias no prostíbulo da Calle Gasometro, 38-2. Ouviu dele que o serviço seria duro, além de ter de pagar 200 euros (cerca de R$ 600) de depósito. Concordou com as regras. Mas não aguentou 10 dias de relações sexuais. A carga de trabalho obriga as mulheres a ter até 44 programas em um único dia.

Letícia não se limitou a denunciar a rotina de escravidão sexual. Forneceu nomes e endereços. O grupo comandado por Antonio, por exemplo, mantém três prostíbulos em Tarragona — o de Letícia usa como fachada a ONG Andando Sin Fronteras —, dois em Vilanova Y La Geltrú e outro recém-inaugurado em Barcelona. A goiana também revelou que o dinheiro pago pela clientela era arrecadado diariamente por Antonio e funcionários. Acrescentou que a casa noturna onde ela trabalhou explorava nove mulheres. Todas brasileiras.

A goiana ficou no exterior até 2008. Voltou ao Brasil em dezembro e, desde então, morava com o filho no Guará. Retornaria à Espanha em junho, data prevista para novo depoimento à Justiça. Mas acabou assassinada em março a mando da mesma organização alvo da denúncia. O acusado pelo crime, Lúcio Flávio Barbosa, recebeu R$ 4 mil para matá-la. Está preso desde a semana passada. “Saiu uma ordem da Espanha dizendo para executar. A morte, então, passou a ser arquitetada por alguém com elos com os criminosos espanhóis”, afirmou o delegado-chefe da 4ª DP (Guará), Jefferson Lisboa.

Suspeito foragido
O brasileiro que planejou o crime, identificado como Clênio Otacílio da Silva, mora no Espírito Santo e está foragido. Trabalhou como garoto de programa para o grupo de Antonio. E esteve no DF em 6 de fevereiro para observar a rotina de Letícia. Hospedou-se em um hotel de Taguatinga, o mesmo onde mais tarde ficou o atirador. “Ela seria assassinada em fevereiro, mas na época ela viajou”, disse Lisboa. Lúcio Flávio chegou a Brasília em 5 de março. O crime ocorreu na noite seguinte em um bar do Setor Habitacional Lucio Costa. O acusado sacou a arma e atirou no rosto da vítima. Os dois, que não se conheciam, marcaram o encontro pelo MSN.

O secretário nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior, classificou o caso com “triste e profundamente lamentável”. “Esse assassinato ocorre em um momento no qual o Brasil intensifica a política internacional contra o tráfico de pessoas. Não era para ser assim”, reclamou. A investigação sobre a quadrilha internacional de prostituição espanhola ficará por conta da Superintendência da Polícia Federal, em Brasília. Cópia do inquérito da 4ª DP seguirá para o Ministério da Justiça brasileiro, que o encaminhará à Justiça da Espanha.


Praia

Tarragona é uma cidade pertencente à comunidade autonôma da Catalunha. Situa-se cerca de 100 km a sudoeste de Barcelona e
é capital da província com o mesmo nome. É banhada pelo Mar Mediterrâneo.

Tempo real

MSN é um programa de mensagens instantâneas criado pela Microsoft. O programa permite que um usuário da Internet se relacione em tempo real com outro que possua o mesmo programa, podendo criar uma lista de amigos virtuais e acompanhar quando eles entram e saem da rede.


 
Depoimento de Letícia à polícia federal espanhola: detalhes do horror vivido como garota de programa
 



Memória
Na rota da prostituição internacional
 
12 de março de 2009
 
24 de março de 2009
 
28 de junho de 2009
 

O Correio iniciou série de reportagens sobre a prostituição internacional no Brasil em março deste ano, quando Brasília passou a fazer parte da mais nova rota de tráfico de seres humanos. Descobriu-se que, a partir do Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek, mulheres, a maioria goianas, seguem rumo à Europa. Portugal, Espanha, Bélgica e Suíça aparecem como os principais destinos de garotas que deixam o país para arriscar a vida em prostíbulos e casas noturnas. São Paulo e Rio de Janeiro também são portas de saída.

A maioria das futuras garotas de programa são convencidas por aliciadores instalados no Brasil. E embarcam com a esperança de vencer na vida. Ao chegar, porém, deparam-se com condições próximas à escravidão. Elas têm o passaporte confiscado pelas organizações criminosas e muitas acabam obrigadas a atender de 10 a 12 clientes por noite. A primeira sequência de reportagens, publicada entre 22 e 24 de março, detalhou o perfil dessas mulheres. A maioria tem menos de 30 anos. Algumas são exploradas inclusive pela máfia russa.

No fim de junho deste ano, o Correio também revelou a participação de Anápolis no tráfico de seres humanos a partir do Brasil. A cidade goiana, distante 140km de Brasília, vive hoje o drama de exportar milhares de mulheres para se prostituírem no Velho Continente. Enquanto mães jovens e solteiras se tornam escravas sexuais em bordéis da Irlanda, Suíça, Espanha e Portugal, os filhos acabam na marginalidade. As matérias foram publicadas em 28 e 29 de junho.




A vítima


Letícia Peres Mourão, 31 anos,
Kléber Lima/CB/D.A Press - 7/3/09
 
 

Nasceu em Goiânia (GO). Como tantas outras goianas de famílias de baixa renda, engravidou cedo, aos 19 anos, e, poucos depois, optou por tentar a vida na Europa. Deixou o Brasil no início dos anos 2000, quando desembarcou na Espanha — o filho ficou com parentes. Contou para alguns familiares que trabalhava em uma clínica de idosos. Mas também vivia da prostituição. Viveu oito anos em pelo menos três cidades espanholas — Tarragona, Vilanova Y La Geltrú e Barcelona.

Sofreu rotina de escravidão sexual ao conhecer Miguel Arufe Martinez, o Antonio, líder de organização criminosa responsável por seis prostíbulos espanhóis. Chegou até ele por meio de outras garotas de programa. Acertou os detalhes pessoalmente, sabendo da dureza do serviço. Mas, depois do horror vivido durante 10 dias como prostituta em um dos bordéis dele, denunciou-o à polícia e à Justiça da Espanha. Também processou o patrão por trabalho escravo.

A goiana voltou ao Brasil em dezembro de 2008. Escolheu o Guará para morar com o filho, mesma cidade onde vive o ex-marido. Ele não quis dar entrevistas. Letícia tinha planos de ficar na capital do país, apesar de possuir mais um depoimento marcado para junho deste ano na Espanha. A maioria dos familiares mora em Goiânia.

A mãe vive em Miami, nos Estados Unidos. E não voltou ao Brasil para acompanhar o enterro da filha, na capital goiana.




Denuncie


O Ministério da Justiça oferece três serviços telefônicos para denúncias de prostituição internacional.
Os números 180 e 100 são do disque-denúncia. E o contato com a Coordenadoria de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, pode ser feito pelo telefone (61) 2025-3038. Por questão de segurança, não há necessidade de se identificar.
 

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