Não sei qual é a parte da minha estrada no teu caminho, mas pelos passos infalsos que dou nos passeios por tua pele, me sinto inexistente entre habitantes e turistas que passam por mim, como se eu fosse um invisível. E quando me veem, é só pra dizerem: de você não sei quase nada. Eu sou uma estrada. Sou só a mostarda na esfiha fria do cliente camarada do tio da barraca. E por mim, passam os corações dessas pessoas apressadas, seja entre máquinas nas ruas ou sub-máquinas nas calçadas.
Poesia no concreto, implorando socorro. E eu às vejo, e eu às escuto. Às admiro. Nada mais. Os grafites berram nos muros, as pichações me acusam, assinando a existência vil de um vandalismo indefinidamente concreto e aço no escuro. Asso os miolos, mas não entendo a lógica da miséria e qual o seu orgulho. Fortemente fraco. Absolutamente indefeso por estar armado, por ser mal amado. Sem dente, sem membro, sem abraço. Cidadão dos desejados aparelhos, de Cidade Tiradentes, Brasilândia, Crackolândia, Butantã, Centro, Santo Amaro ou Parelheiros. O que menos importa aqui é onde fica o seu puleiro. O que importa é a pontualidade do ponteiro, pro patrão não mandar embora e você ficar sem dinheiro. Condição de brasileiro. Capitalismo estrangeiro, globalizado, inclusivo, malandro e traiçoeiro. Cabeça no travesseiro, olho aberto o tempo inteiro, como eu vou pagar o padeiro, o cozinheiro, o cabeleireiro, o açougueiro… Me sujeito ao sub-emprego porque sou feio mas também preciso de dinheiro. Ou então viro um trambiqueiro. Maloqueiro é mais valioso que honesto, compare o valor de uma mina no puteiro. Ajudar ao próximo é bonito mas não dá dinheiro. Dinheiro. Dinheiro.
Essa beleza que se mostra não é a beleza que existe. Amarga e dura. Concreto e aço. Bonecos de piche. Pixels num grande tumulto esfumaçado. Pixels lançados do luxo ao lixo no primeiro raio solar pelo estilingue do tempo dos subalternos, comandados por gravatas e ternos. Luta travada, sofrimento eterno.
Em meio a tantos corações pulsando, me era de mais estímulo gravitacional, sentir-me menos sozinho. Tadinho. É na imensidão da multidão que se corre a solidão. Todos estão cegos. Mudos. Surdos. A carapuça então protege dos abusos.
Em meio a tantos corações pulsando, me era de mais estímulo gravitacional, sentir-me menos sozinho. Tadinho. É na imensidão da multidão que se corre a solidão. Todos estão cegos. Mudos. Surdos. A carapuça então protege dos abusos.
Há aqueles que discutem os problemas metropolitanos. Apontam soluções. Fazem planos. Se permitem sofrer. Marcham e gritam nas vias. “Sou puta, sou maconheiro, sou gay, sou brasileiro…” Mas no fim de cada protesto, as crias da rua fuçam os sacos pretos encostados no poste resgatando sobras e as transferindo ao estômago, quando há sorte, e quando não há, se pá, engolem prego. Pivetes, mendigos, indignos, magos da sub-existencia de uma desvairada pauliceia, que não tem renda pra merenda, não tem verba pra limpar toda a merda, não tem nome de santo ou herói que mate a fome, não há discussão que reparta o pão nem opinião de especialista algum que mude a situação. Muito barulho em vão. Uma hora todos caem no vão entre o trem e a plataforma. Se ilude quem tenta uma reforma, corre atrás de uma vitória, Glória a dEUS, ora que melhora, derruba aquela senhora e cata dela toda a joia. Esmola só pede quem não sabe como se boia na cidade paranoia, onde inventaram uma cara pro nóia, ele é preto e pobre, a nossa escória. E assim, fora da escola, se reprisa a história.
Onde o ar custa moléculas de carbono, onde um lar custa contas de água, luz e telefone, onde a refeição custa o suor da fome, onde a sobrevivência custa um tiro na nuca de algum homem, onde ir e vir custa mais do que ficar, onde há um emaranhado de ruas de mão dupla, os valores da vida entram em disritmia, as retinas acostumadas com a rotina conduzem os passos e a janela dos olhos deixam de ver, deixam de serem vistos. Simplesmente passam, não podem atrasar no serviço. No interior da Selva de Pedras (S.P.), na margem da urbana guerra sub-humana, eu existo.
Onde o ar custa moléculas de carbono, onde um lar custa contas de água, luz e telefone, onde a refeição custa o suor da fome, onde a sobrevivência custa um tiro na nuca de algum homem, onde ir e vir custa mais do que ficar, onde há um emaranhado de ruas de mão dupla, os valores da vida entram em disritmia, as retinas acostumadas com a rotina conduzem os passos e a janela dos olhos deixam de ver, deixam de serem vistos. Simplesmente passam, não podem atrasar no serviço. No interior da Selva de Pedras (S.P.), na margem da urbana guerra sub-humana, eu existo.
Eu me condeno por existir, por ver, por sentir. Por destilar o mesmo veneno. Me faço de feliz pra sociedade não zombar de mim. Mas mesmo assim, fazem minha condição de ser e existir, um escravo da hipocrisia. Eu exijo o direito de sofrer e jamais sentir alegria de uma cidade infestada de parasitas em agonia. A cidade é o hospedeiro dos parasitas, gente mutilada, pessoas malditas, que em atos de desespero, por medo ou por desapego, se livra de alguns com um sacolejo. Mas os filhos ficam, e aqueles que não suicidam o prazer de existir em S.P., cultivam a cultura ancestral, da periferia feia e de pólos de riquíssimo carnaval monetário, comandando o povo otário, surfando no exploratório sofrimento proletário sem poesia, ajoelhado no oratório, vestindo a fantasia dia-a-dia, dissimulando alegria, sem saber porque nem como, não tem o que comer na mesa, ao mesmo tempo que o banquete vai ao lixo da burguesa, da qual entrega as forças a cada novo dia. Afasia. Fria. O cidadão de papelão na rua, invisível a luz do dia, odoriza o pedido de socorro, no centro, no morro, ao vivo, ao morto. Fogo. Do cano da policia ao cano do bandido, na sequencia banido, pela própria existência, pela própria força, na mesma frequência o substituto se apresenta, toma conta de novo, mantendo o ciclo da ausência de sentido. Bandido. Todos somos mas só os mais afortunados são punidos, estereotipados, cansados da eterna labuta, meros filhos da porra que cruzou com a puta. Prostitutas, Higienopolizadas ou rebaixadas à Augusta, de agosto à agosto, sentindo o gosto do desgosto de viver com o rosto emporrado de nojo. Estuprados estamos todos, então por que rir do tamanho do arrombo do outro? A quantia de ouro no pescoço é o que determina o quão valioso é a carne sobre o osso? Quantos quilates valem sua falsa felicidade de ser habitante dessa imunda cidade? Cão abandonado também late, seja pra censurar ou pra exigir o osso ruído que foi roubado, exigir o skate ou o hiate importado, exigir o emprego da palavra útil ou pra entrar no hiato da mera falta de capacidade de suportar a pimenta no cu oco, no cérebro manipulado, do pulo do gato moribundo mal calculado caindo quando tentou sair de cima do muro, retirante em busca de futuro, tomou um murro, bicuda na canela, paulistinha de paulista, quebrou a perna, um caco, um chute no saco, internado no açougue hospitalar, onde cortam o bife com o mesmo uniforme ensanguentado, coitado. Cai em pé porque é gato gaiato.
Coito interrompido, causa da morte: suicídio, o sujeito, ainda um feto, foi esperto, não queria ser afetado, se matou na barriga da mãe adolescente, desplugando o cordão umbilical ao saber qual seria sua cidade natal, ao saber que o pai traficante tomou uma rajada fatal da federal ao tentar fugir da capital, da metrópole infernal. Tristeza. Na porta da igreja o fiel cede o papel sagrado, conquista do trampo suado pro pastor salafrário, Malafaia, Edir, R.R. ou qualquer caralho, que gasta com dEUS os fictícios ensinamentos bíblicos, tirando do pobre pra ficar rico. E mesmo sendo o maldito, nem o diabo é tão indigno da ganância do próprio benefício. É difícil. E na TV, o sensacional vômito trágico, berrando alto que não existe amor em preto, pobre, favelado, mas que pensa em amor quando não há o que comer, não dá pra descrever, um buquê em forma de S.P., cheio de flores mortas pra gringo ver. Você. A culpa é sua, a culpa é nossa, o santo cospe do paraíso, manda barraco pra fossa e para tudo isso, mas para tudo isso não há prefeito capaz de assumir o compromisso de dar sumiço em todo esse lixo, seja matéria ou humano, canino paulistano, paulista suburbano, menino entorpecido de cola de sapato, passa a droga pela brecha do vidro do carro importado, mas ao se virar, morreu atropelado pelo ônibus lotado de trabalhadores cansados, amarrotados, conformados de pagar tudo calado e então acostumados, não perceberam o estrago e o moleque esmagado foi comido pelas pombas e gatos, vira-latas, mendigos e ratos, também habitantes da cidade, chapados e se pá, bem mais felicitados por não terem percebido que atravessar na faixa poderia ser mais fácil, se não existisse tráfego, e o que o mano só atravessou por ser aviãozinho do tráfico, mas você, você não quer ver, de certo vai doer, chegar perto faz sofrer, viver é um castigo e é esse meu pecado, de segunda a sábado, no barraco ou no apê, na internet ou na TV, amarelo, branco, preto, japonês ou E.T., não importa o tamanho do seu cu, sua merda vai feder, porque ele existe, ela existe, você existe, eu existo, mesmo que ninguém consiga ver, nóis existe em S.P.!
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