Muita mulher junta quase sempre é problema. Imagine então o que rola dentro de um cubículo atulhado de assassinas, ladras e traficantes. No embalo da CPI do sistema carcerário, que tem denunciado condições subumanas nas cadeias, Maxim mergulhou no mundo violento e claustrofóbico dos presídios femininos. Você se acha um cara macho? Espere para ver o que essas meninas suportam
Por: Luiza Fernandes Fotos: Luiz Alves/Sefot/CD Ilustrações: Roseli Fernandes
Ana Paula acorda sobressaltada, às cinco da manhã, com o barulho de uma porta sendo arrombada. É a polícia, invadindo sua casa para prendê-la por posse de 51 pedras de crack. Ela nega tudo. Sem demora é algemada, recebe chutes e cabeçadas. Os policiais só param quando grita que está grávida. O pai, um assaltante. Colocada na viatura, é levada para uma delegacia, a porta de entrada do sistema carcerário. Depois (sabe-se lá de quanto tempo), será julgada e transferida para um presídio. Durante cinco semanas, Maxim teve acesso a três prisões femininas de São Paulo, onde ouviu detentas, guardas, assistentes sociais e ex-presidiárias. Conhecemos as terríveis “C.I’s”, ou celas individuais. Recebemos cartas das presas, o estatuto do PCC e fotos exclusivas, feitas para o relatório da CPI do sistema carcerário. Tentamos também consultar fontes oficiais, por duas vezes, através da Secretaria de Administração Prisional, que não quis colaborar com a reportagem. Respire fundo e acompanhe.
Delegacia: As boas-vindas do sistema
“Quando fui presa eu preferia estar drogada, mas como estava limpa pude ‘curtir’ o medo durante todo o tempo. Pela minha cabeça passava o que ia acontecer comigo, se eu ia voltar logo pra minha casa ou se ia apanhar muito. Eu não tinha ninguém, nem para quem pedir socorro. Só me sentia intimidada o tempo todo. Mil coisas passavam pela minha cabeça e ao mesmo tempo não conseguia pensar em nada. Tinha medo do que estava por vir.”
Ana Paula, presa por tráfico de drogas, sem família e condenada a cinco anos.
Deixando de lado possíveis agressões no momento da captura e no traslado, a entrada da presa no sistema começa com atividades burocráticas, como a elaboração da ficha criminal e o exame de corpo de delito. Mas a monotonia acaba bem rápido. O próximo passo, a revista, dará uma idéia mais clara para a mulher de como será sua vida. Primeiro ela é totalmente despida na frente das guardas. Então deve abaixar a cabeça, balançar os cabelos, agachar três vezes com os joelhos abertos e assoprar o peito da mão com força, para que a polícia tenha certeza de que não está levando drogas ou qualquer outra coisa dentro da vagina ou do ânus. Na etapa seguinte, o medo se transforma em realidade. A mulher é encaminhada para uma cela. “Tem água nova no Xis”, gritam as veteranas. A frase tem vários significados; o mais leve é que vai ter de aumentar a água no feijão do xilindró. Os mais pesados serão descobertos logo na primeira noite.
“Fui levada para a delegacia porque fui pega em flagrante trazendo drogas do Paraguai para o Brasil. Eu tinha me arrumado toda: unhas feitas, cabelos escovados e roupa bonita. Eles me pegaram e me jogaram no camburão. Comecei a ficar apavorada quando os policias disseram que minhas unhas iam se acabar no chão de cimento da cela e que como eu era bonitinha ia arrumar um marido rapidinho lá dentro. Tavam falando de um dos sapatões, que ficam esperando alguém nova para dominar.”
Antônia, 52 anos, presa por tráfico internacional de drogas, sem família e condenada a cinco anos.
Sensação de primeiro dia
Quando a porta da cela de uma “comarca” (gíria para delegacia) é aberta, a novata encontra outras 20 mulheres, com as quais irá dividir um espaço projetado para seis pessoas – o Brasil tem 26 mil presas, número que dobrou entre 2002 e 2007, gerando um déficit de 12 mil vagas. O lugar é equipado com seis “jegas”, uma “boqueta” e um ”boi”. Se você ainda não passou uma temporada enjaulado, tome nota: estamos falando de seis camas de concreto com 50 centímetros de largura, um pequeno orifício de ventilação no alto de uma das paredes e um buraco cavado no chão onde se faz as necessidades. Além dessas amenidades, há dois canos de água fria sobre um pedaço de cimento; o mais alto serve de chuveiro, o rente ao chão é usado como pia.
“Quando a água nova entra no Xis, ela é obrigada a tirar os sapatos. Ela tem que respeitar a gente, porque não sabemos onde os sapatos dela pisaram. Ela pode estar trazendo muita doença para dentro da cela. Se não fizer isso, a barraqueira [a mulher mais velha da cela] dá um grito e manda ela tirar o sapato a qualquer custo. Até aí o clima não está pesado pra novata. Levamos ela pro chuveiro e se precisar damos roupas e toalhas pra ela. O esquema é tentar viver em harmonia. Mas o Xis é uma bomba pronta pra explodir. Imagina o que são umas 20 mulheres obrigadas a conviver todo dia, das cinco da tarde até as oito da manhã.”
Camila, 32, presa por tráfico de drogas e contravenção, seis anos de pena.
Camila tem razão – e às vezes a explosão acontece logo de cara. Quando uma novata comete um crime considerado inaceitável, as guardas fazem questão de alardear o fato no momento em que ela é jogada na cela. A nova presa então descobre outra lei, que ali vale mais que qualquer código penal – a lei do cão. Com um olhar vago e visivelmente perturbado, Cíntia conta como foi recepcionada no Xis:
“Eu era sempre estuprada pelo meu pai. Um dia resolvi matá-lo com um tiro, mas bem na hora minha mãe entrou na frente. Acabei matando os dois. Quando a guarda me colocou no Xis, gritou para todo mundo ouvir: ‘Essa liquidou pai e mãe’. Isso foi às sete da noite. Até as cinco da manhã, quando eu já estava quase sem vida, tomei choques com resistência de chuveiro na vagina, rasparam minha cabeça, queimaram minhas costas com cigarro, apanhei sem roupa de toalha molhada, recebi chutes na cara e ainda tatuaram no meu braço ‘Matou pai e mãe’. Não adiantava nada eu berrar por socorro das guardas. Dava para ouvi-las gargalhando do outro lado do corredor”.
Cíntia, 28, condenada a 15 anos por duplo assassinato, cumpriu seis e saiu.
Para os não-iniciados na arte da tatuagem carcerária, vale uma explicação. Ela é feita com dois instrumentos: agulha usada e tinta de caneta Bic. O procedimento pode ser dolorido ou, no caso de Cíntia, muito dolorido. A novata então passa por outro teste quando a noite chega. Em cada ‘jega’ dormem duas mulheres em forma de valete (uma com a cabeça nos pés da outra). Quando há mais do que duas presas por cama, é feito um revezamento. No caso de superlotação, a coisa fica ainda mais complicada: além do chão, o banheiro é utilizado como cama. Azar dessa mulher, que ocupa um lugar “público”, é a última a dormir e a primeira a acordar. Por respeito à companheira que passou a noite com a cabeça num buraco imundo, ninguém se atreve a requisitar a latrina durante a madrugada. No dia seguinte, se a novata tiver algum apetite, vai sentir um novo clima de tensão.
GOSTO DE BOI RALADO
Como as delegacias são instalações menores, onde não há espaço para cozinhas coletivas como nos presídios, as refeições – três ao dia – chegam de fora, em bandejas mal-lavadas, ou “bandecos”. O café-da-manhã são alguns pães murchos, com quase nada de margarina e uma jarra de café frio. Almoço e janta vêm em marmitex. Frios.
“Nas primeiras semanas de delegacia eu só comia pão. Era a melhor coisa que tinha. Como ninguém sabe como aquela comida foi feita, fazemos um “recorte”: antes de comer, lavamos a comida com água do cano do chão e temperamos de novo. Depois esquentamos tudo com o “pirulito” [papelão enrolado no plástico, usado para fazer fogo]. O cardápio é arroz e feijão (às vezes com uns bichinhos brancos), carcaça de frango, quibe e “boi ralado” [carne moída]. Cansei de achar pedaço de unha, cabelo e até pentelho na comida. Demorei muitos anos aprendendo a comer de garfo e faca. Em um dia de presa aprendi a comer de colher de novo. Antes de comer a gente é obrigada a ficar de pé e rezar o Pai Nosso em sinal de agradecimento.”
Carolina, 31 anos, falsária, condenada a 1 ano e 8 meses
As peculiaridades gastronômicas das prisões têm deixado de estômago virado os deputados da CPI do sistema carcerário. No Instituto Penal Paulo Sarasate, por exemplo, detentas comem arroz, feijão e mistura servidos dentro de sacos plásticos. A presa agora será transferida da delegacia para cumprir pena num presídio. Bem-vindo à segunda parada de nossa odisséia.
ENFIM, O PRESÍDIO
“Quando a gente entra aqui, nunca sabe o que vai acontecer. Não sabe quem é bom ou ruim, em quem se pode confiar. No primeiro mês eu morria de medo de dormir e não acordar mais. Antes tinha um sono pesado, hoje acordo com qualquer barulho.”
Zilda, 36 anos, presa por roubo a banco, condenada a 5 anos e já esperando sua liberdade.
Existem 55 unidades prisionais exclusivamente femininas no Brasil. Nelas uma mulher faz amigas e inimigas, conhece outras leis, vira evangélica, muda de sexo, aprende tricô, trabalha em funções que não sabia, perde dentes, fica doente e ganha para sempre marcas de ex-presidiária. Muitas das que acabam aqui dizem que entraram na vida do crime por culpa dos companheiros, que as deixam com filhos ou as atraem para o crime com dinheiro fácil para transportar drogas. Algumas percebem o erro tarde demais e se arrependem, outras mergulham de vez na nova vida.
“Eu nunca fui do crime. Uma vez meu companheiro pediu para eu trazer uns pacotes de maconha do interior e fui pega voltando para São Paulo. Fui presa em flagrante. Hoje tenho a plena certeza de que não quero voltar a fazer isso. Quero ter uma vida digna, como sempre tive, a não ser por esse deslize.”
Cida, 52 anos, mãe de dois filhos formados, hoje evangélica, cumprindo o segundo ano de sua pena de seis.
“Minha família sempre cuidou muito bem de mim. Apesar de pobre, minha mãe sempre me mimou. Arrumei um namoradinho que me fez de laranja e me mostrou que para ganhar dinheiro fácil, o tráfico e as tretas eram o melhor caminho. Mas é o seguinte... Não garanto que vou largar este caminho. Preciso de grana.”
Camila, presa por tráfico de drogas e contravenção, 32 anos e um filho, condenada a 6 anos.
Num presídio, as mulheres são divididas em celas que têm entre cinco e seis metros quadrados e abrigam de duas a quatro pessoas. Nelas contam com um ou dois beliches, um armário velho, um banheiro e uma janela. O chuveiro é gelado. Água quente, só no banheiro coletivo, ao final do corredor. Mas muitas abrem-mão deste luxo.
“Prefiro tomar banho gelado no banheiro do meu quarto, que pelo menos é limpo, do que ir lá no coletivo e pisar naquele monte de catarro que tem no chão, pêlo de periquita e cabelo. Faço questão de limpar minha cela todos os dias com Shampoo Jonnhson que ganho da minha família. Até porque, as guardas fazem inspeções o tempo todo e se a cela estiver suja ou bagunçada, elas tiram nossas regalias.”
Camila
CHEIRO DE COLCHÃO SUADO
O uniforme que a presa recebe é uma calça amarelo-berrante, bermuda e camiseta branca. Se a calça sujar, tem de ser lavada à noite e estar seca de manhã, ou ela terá que se virar com a bermuda, mesmo no inverno. Quando isso acontece, muitas usam blusas de lã doadas para cobrir as pernas. Se a roupa rasgar, a presa é quem costura. Eventualmente a roupa velha é substituída. Se o assunto é saúde, as coisas não são melhores. O serviço médico e dentário não é contínuo: ginecologistas aparecem poucas vezes ao ano. Alvos fáceis de doenças, essas mulheres sofrem quando precisam de atendimento mais especializado. “Grande parte dos presídios que visitamos não serve nem para bichos”, declarou o deputado Domingos Dutra (PT-MA), relator da CPI do sistema carcerário. Uma presa nos dá o quadro concreto da situação:
“O cheiro de uma cadeia é de um colchão velho e suado. Procuramos limpar tudo para manter a saúde, mas o cheiro nunca vai embora. A gente tem que pensar que a limpeza é para o nosso próprio bem. Veja o meu caso, acho que tenho uns 15 dentes com cárie por causa da comida horrível, da água sem tratamento e da falta de dentista. Quando alguma de nós está com dor de dente, outra vai lá e arranca. Nunca fui atendida por um dentista aqui dentro. A gente só é encaminhada para o hospital quando está desacordada. Aqui tem um ambulatório, que é nada mais que uma presa dando AAS e Dipirona pra outra. Além disso, a gente só conta com o próprio sistema imunológico. Moça, isso vai sair na Globo? Fala que a gente precisa de médicos.”
Zilda
PRISÃO OU RESORT?
Presas grávidas têm um problema a mais. Quando ganham bebê, vão para uma unidade diferenciada. Lá ficam com os filhos por quatro meses – em alguns casos até seis – e depois devem entregar a criança para familiares ou a um abrigo. Do governo, as mães ganham leite e fraldas. Para as roupinhas, contam com doações.
“Se a presa não tem família, a criança é levada para um abrigo público. Neste caso as chances da mãe reencontrar sua criança, quando sair em liberdade, são praticamente nulas.”
Assistente social que não quis se identificar. Aparenta uns 30 anos e não demonstra muita paciência com as presas.
SOLIDÃO E MEDO NA C.I.
Os “castigos” impostos às presas indisciplinadas podem variar de perda temporária de benefícios a reclusão nas celas individuais. A C.I. é o tal lugar onde a filha grita e a mãe não escuta – e uma das coisas que mais têm chocado os deputados da CPI do sistema carcerário. É um espaço de 2 x 2m, sem janela, com um colchão mofado e sem lençol, um “boi”, uma porta de aço e uma minúscula fenda por onde chega a comida. Ali, as presas rebeldes ficam em média uma semana, sem poder conversar com ninguém, sem trocar de roupa, sem tomar sol e saindo apenas uma vez por dia para tomar banho.
“Quando a diretora passa temos de largar tudo o que estamos fazendo, colocar as mãos para trás e abaixar a cabeça. Já tomei perca de regalia por não me curvar para a autoridade máxima. Quando a gente fica rebelde e briga ou xinga as guardas, aí o castigo é mais pesado. Elas mandam a gente pra C.I., é horrível. As paredes são pintadas com sangue velho das meninas que foram torturadas ali. Os direitos humanos não permitem este tipo de violência contra a presa, né, mas quem é que vai saber o que está acontecendo no subsolo de uma prisão? Já vi gente saindo morta de lá.”
Camila
MOEDA PRÓPRIA
Mulheres encarceradas têm também alguns benefícios e um dos mais almejados é o trabalho. Diversas empresas têm sucursal dentro de presídios e oferecem emprego, salário e uma oportunidade de redução da pena – a cada três dias trabalhados, a detenta ganha um dia de remição. O salário é o mínimo oficial, mas como elas não podem receber dinheiro vivo, ganham no pecúlio – espécie de caderneta de poupança, sob a tutela do presídio. Todo fim de mês elas recebem um extrato com o saldo. Com o dinheiro, podem comprar itens que o presídio vende ou fazer um vale-postal e mandar parte para a família. Quando termina a pena, a mulher recebe o saldo do pecúlio. Mas conseguir trabalho ali não é fácil. O processo de seleção não leva em conta só a capacidade da presa, mas o crime que cometeu: quanto “pior”, mais difícil arrumar uma ocupação. Além das empresas, as detentas podem conseguir trabalho na própria administração do presídio – considerados os melhores empregos. Um dos mais disputados é na cozinha – nas penitenciárias são as próprias presas que cozinham. Mas mulheres vistas como perigosas demais dificilmente conseguem trabalhar lá. Para elas e para as de pior comportamento é reservado a limpeza.
“Quem é ré primária ou cometeu crimes leves tem muito mais chance de conseguir emprego nas firmas dentro da cadeia. Quem vai querer contratar uma maloqueira? Eu cheguei a pagar um curso para meu filho com o trabalho que tinha aqui dentro. Pra comprar os produtos que eles vendem aqui, a gente recebe uma lista, marca o que quer e depois de muito tempo recebe. Dá pra comprar coisas de higiene pessoal, chuveiro, cigarro, brinquedo pros filhos, caderno, caneta, linha, agulha, acetona, lâmina de barbear, mas tudo é mais caro que lá fora e a qualidade é uma porcaria. O governo diz que nos dá itens de higiene pessoal, mas é tudo mentira. Nem papel higiênico! Quem trabalha ou tem família consegue limpar a bunda, quem não tem dorme com o rabo sujo”.
Antônia
Os presídios também têm suas moedas informais. Os itens do “jumbo”, o Sedex enviado pela família da presa com cigarros, sabonetes, xampu, papel higiênico e peças íntimas, são o verdadeiro dinheiro prisional. “O cigarro é o que vale mais”, diz Antônia. Mas é difícil mensurar quanto vale cada objeto. Isso depende muito do humor, da necessidade e do grau de amizade entre quem está vendendo e comprando.
PARA ALIVIAR A DOR
Junte um monte de mulheres, dê a elas tempo livre e, você sabe, a vaidade será assunto. Mesmo num presídio. Em dias de visita, elas gastam horas se produzindo para maridos, filhos e pais. Arrumam o cabelo, dão um trato nas unhas, se maquiam e se perfumam. Depilação também rola, mas só pode ser feita com lâmina comprada na cadeia. Idem com acetona.
“Não é porque estamos presas que temos que viver como bichos enjaulados. Nosso instinto feminino bate mais forte. Nos dias de visita ficamos muito ansiosas esperando pelos parentes e amigos.”
Antônia
Os “sapatões”, ao seu modo, também se arrumam. Raspam a cabeça, alisam os poucos pêlos de um imaginário bigode, se enchem de correntes masculinas e impostam a voz. “Hoje você vai conhecer minha mãe, se arruma e vê se se comporta”, diz um deles para sua parceira, uma menina loirinha e apaixonada. “A falta de opção e o abandono dos maridos fazem com que elas troquem de sexo”, diz uma assistente social. No Estado de São Paulo, a única penitenciária feminina que permite visita íntima – uma cortininha na frente da cama – é o Presídio da Capital.
Boca do inferno
O dicionário do Sol-quadrado
Bandeco - Bandejas onde as refeições são servidas
Barraqueira - Presa mais antiga da cela
Boi - Buraco no chão usado como privada
Boi Ralado - Carne moída
Boqueta - Pequena janela no alto de uma cela
Cadeia de verme - Cadeia não controlada pelo PCC
Cofre - Presa designada para esconder objetos proibidos em orifícios do corpo
Comarca - Delegacia
Cunhada - Mulher de um homem ligado ao PCC
Entrar no ar - Ter um celular dentro da cadeia
Faxina - Presas ligadas ao PCC que “cobram” as que dão mancadas
Irmão - Integrante do PCC
Jegas - Camas de delegacia, feitas de cimento
Jumbo - Encomenda (via sedex) enviada pela família
Pirulito - Papelão enrolado em plástico usado como tocha para esquentar a comida
Recorte - Lavar (literalmente) a comida que vem no bandeco antes de comer
Xis - Xilindró, ou cela de uma delegacia
As detentas também passam o tempo aprendendo a tricotar, desenhar, fazendo uma roda de samba, batucando em baldes e assistindo ao último capítulo da novela, na TV de cinco polegadas que alguns presídios permitem. As cartas são outra distração importante. Além da visita, são o único meio de contato com o mundo externo. Escrever para a família e amigos é uma rotina semanal – pelo menos para as que são alfabetizadas e têm papel, caneta e envelope para isso. Todas as cartas que saem ou entram no presídio são lidas por uma agente penitenciária encarregada de censurar as mensagens que julgar perigosas.
“Como as reeducandas sabem que as cartas são lidas, elas tentam de qualquer forma fazer com que as mensagens não tenham significado para nós, mas já temos prática em saber quando estão tentando passar informações que não devem chegar lá fora. Faço esse trabalho há dois anos e leio cerca de três mil cartas por semana. É o pior trabalho do mundo.”
Agente penitenciária
JESUS E MACONHA
As igrejas que têm espaço nos presídios, além de esperança, dão um pouco de distração para as detentas. Batista, Renascer, Assembléia de Deus, Católica e outras também levam para essas meninas roupas e kits de higiene. São as igrejas que organizam festas de Dias das Mães, Dia das Mulheres e Natal.
“Dificilmente uma presa não tem Bíblia. É a primeira coisa que a gente procura quando chega neste inferno. Muitas presas se convertem e seguem a Jesus quando chegam aqui. Algumas só para se aproveitar da boa vontade das igrejas, outras realmente se regeneram e outras aparecem por curiosidade”.
Cíntia
Fora da cadeia, coisas proibidas costumam ser caras e difíceis de conseguir. Dentro, são ainda mais caras, só que mais fáceis. As drogas entram da forma mais óbvia: na genitália. Mas também são escondidas dentro de alimentos. Quem coloca dentro da comida e quem deixa passar, ninguém sabe. Ou todo mundo sabe. Armas também vêm do mesmo jeito. “Entrar no ar” – ter um celular – é uma realidade também nas cadeias para mulheres. No Estado de São Paulo, nenhum presídio feminino tem bloqueador de ligações. Mas os celulares não são levados por familiares, nem na comida, tampouco na genitália. Segundo duas entrevistadas, eles são entregues pelas policiais que cobram pelo “serviço”.
As regras da firma
Uma ex-presidiária ligada ao PCC nos entregou um código de conduta com dezeseis pontos, conhecido como o “Estatuto da Organização”. A gramática original do documento foi mantida. Ninguém aqui seria louco em alterá-la.
“Nunca tinha visto maconha na vida. Foi dentro da cadeia que vi e provei a droga pela primeira vez. Ela vem escondida na vagina, no ânus e na comida. Celular dá pra arrumar a qualquer hora, é só ter dinheiro. O Marcola paga mais de R$ 20 mil para entrar no ar. Ele não pode ficar sem conversar com a organização [PCC]”.
Camila
PCC x “verme”
O Primeiro Comando da Capital, ou PCC, foi criado em São Paulo, mas hoje atua em prisões de vários Estados. Seja feminina ou masculina, essas penitenciárias estão sob forte comando da organização. Mesmo entrevistando várias presidiárias, não foi possível descobrir claramente como se faz para fazer parte do PCC. Mas o que importa é que uma vez dentro, não se sai. Só morta ou virando evangélica. Sob o lema: “Liberdade! Justiça! E Paz!”, os integrantes da organização se tratam como “irmãos” e as mulheres desses irmãos são conhecidas como “cunhadas” e têm de se guiar por um estrito código de conduta. Todas as atividades das detentas são controladas e requerem prévia autorização. Se uma desavença acontece e as presas querem recorrer à violência para resolvê-la, só com permissão do PCC. Por incrível que pareça, é o Primeiro Comando da Capital quem mantém um certo equilíbrio nos presídios. Mas isso tem um custo.
“Morto e evangélico não falam. Quando vira evangélica, a pessoa realmente saiu do crime e não vai querer saber do passado. Nós confiamos nessas pessoas. O PCC veio para ditar as novas regras e eu o defendo porque ele é bom. Antigamente na cadeia o que valia era olho por olho, dente por dente. A violência corria solta nas celas. Hoje, o PCC cuida de nós. Claro que quem dá mancada é cobrado pela faxina. O PCC só dá uma chance. Se não souber aproveitar, as conseqüências estão bem escritas no código.”
Andréia, 27 anos, ex-presidiária e ligada ao PCC
“O PCC não autoriza que seus membros sejam usuários de crack, mas podemos traficar a droga, porque é algo muito rentoso. Mas jamais você vai ver um irmão usando a pedra.”
Rosângela, irmã de um integrante do PCC
Existem também as cadeias da oposição ao PCC, chamadas de “verme” – onde, segundo as “irmãs”, o inferno consegue ser ainda pior. Como não há um poder centralizado, cada preso faz a sua própria lei, gerando tensão, desconfiança e violência às vezes descontrolada. Dormir e acordar machucada, ter pertences roubados, apanhar sem saber o porquê e outras atrocidades acontecem com freqüência. Familiares, segundo elas, também não são respeitados. Alguns são furtados durante o dia de visita.
“Nos vermes a coisa de cada um por si e Deus por todos ainda funciona. Lá os jumbos das presas são roubados, a lei do mais forte impera e a desconfiança rola solta. Nunca gostaria de ir parar numa cadeia de verme. Lá tem troca de facas, estupro e muita caguetagem entre as presas.”
Andréia
Vida após a cela?
A reclusão é uma das formas que nossa sociedade escolheu para punir e reeducar. As prisões que visitamos fazem muito mais que isso. Elas corrompem as detentas, transformando-as em mulheres com fúria nos olhos, destemidas e desesperadas. Um dia a pena termina e elas voltam às ruas. Talvez você encontre uma delas pela frente.
“Quando fiquei presa, o PCC me protegeu. Após um ano e oito meses de cadeia, fui liberta e hoje pago uma mensalidade de R$ 50 para ajudálos. Continuo fazendo minhas ‘coisas’. Se for presa de novo não tem problema, eu vou comer, dormir de graça e ainda vou ter as guardas sendo babá de ladrão, apagando a luz para eu dormir”.
Renata, 30 anos, tem um filho de três anos e marido evangélico
“Fui presa quando estava em um ônibus que saiu de Santo Amaro e ia sentido Interlagos, em São Paulo. Como tinha voltado do mercado, coloquei minhas sacolas embaixo do banco e segui para casa. Não percebi que atrás de mim sentaram dois malandros procurados pela polícia. Quando uma viatura parou o ônibus, os caras colocaram a droga na minha sacola. Fui presa. Após cumprir a pena de quase dois anos, voltei para minha família. Tudo que eu via de errado, eu orava a Deus e pedia para Ele não me deixar corromper, mas mesmo assim comecei a fumar cigarro. Hoje ajudo em uma casa de recuperação para mulheres, mas alguns traumas são para sempre.”
Neusa, 59 anos, mãe de quatro filhos, avó de dois netos, evangélica
Por: Luiza Fernandes Fotos: Luiz Alves/Sefot/CD Ilustrações: Roseli Fernandes
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| Castigo na cela individual: sangue nas paredes e buraco para necessidades |
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| (No sentido horário) Três flagrantes de presas em Belém e uma cela em Florianópolis: dor e desesperança |
Delegacia: As boas-vindas do sistema
“Quando fui presa eu preferia estar drogada, mas como estava limpa pude ‘curtir’ o medo durante todo o tempo. Pela minha cabeça passava o que ia acontecer comigo, se eu ia voltar logo pra minha casa ou se ia apanhar muito. Eu não tinha ninguém, nem para quem pedir socorro. Só me sentia intimidada o tempo todo. Mil coisas passavam pela minha cabeça e ao mesmo tempo não conseguia pensar em nada. Tinha medo do que estava por vir.”
Ana Paula, presa por tráfico de drogas, sem família e condenada a cinco anos.
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| Superlotação numa cadeia do Rio de Janeiro |
“Fui levada para a delegacia porque fui pega em flagrante trazendo drogas do Paraguai para o Brasil. Eu tinha me arrumado toda: unhas feitas, cabelos escovados e roupa bonita. Eles me pegaram e me jogaram no camburão. Comecei a ficar apavorada quando os policias disseram que minhas unhas iam se acabar no chão de cimento da cela e que como eu era bonitinha ia arrumar um marido rapidinho lá dentro. Tavam falando de um dos sapatões, que ficam esperando alguém nova para dominar.”
Antônia, 52 anos, presa por tráfico internacional de drogas, sem família e condenada a cinco anos.
Sensação de primeiro dia
Quando a porta da cela de uma “comarca” (gíria para delegacia) é aberta, a novata encontra outras 20 mulheres, com as quais irá dividir um espaço projetado para seis pessoas – o Brasil tem 26 mil presas, número que dobrou entre 2002 e 2007, gerando um déficit de 12 mil vagas. O lugar é equipado com seis “jegas”, uma “boqueta” e um ”boi”. Se você ainda não passou uma temporada enjaulado, tome nota: estamos falando de seis camas de concreto com 50 centímetros de largura, um pequeno orifício de ventilação no alto de uma das paredes e um buraco cavado no chão onde se faz as necessidades. Além dessas amenidades, há dois canos de água fria sobre um pedaço de cimento; o mais alto serve de chuveiro, o rente ao chão é usado como pia.
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| Comida das dententas no Presídio de Belém |
Camila, 32, presa por tráfico de drogas e contravenção, seis anos de pena.
Camila tem razão – e às vezes a explosão acontece logo de cara. Quando uma novata comete um crime considerado inaceitável, as guardas fazem questão de alardear o fato no momento em que ela é jogada na cela. A nova presa então descobre outra lei, que ali vale mais que qualquer código penal – a lei do cão. Com um olhar vago e visivelmente perturbado, Cíntia conta como foi recepcionada no Xis:
“Eu era sempre estuprada pelo meu pai. Um dia resolvi matá-lo com um tiro, mas bem na hora minha mãe entrou na frente. Acabei matando os dois. Quando a guarda me colocou no Xis, gritou para todo mundo ouvir: ‘Essa liquidou pai e mãe’. Isso foi às sete da noite. Até as cinco da manhã, quando eu já estava quase sem vida, tomei choques com resistência de chuveiro na vagina, rasparam minha cabeça, queimaram minhas costas com cigarro, apanhei sem roupa de toalha molhada, recebi chutes na cara e ainda tatuaram no meu braço ‘Matou pai e mãe’. Não adiantava nada eu berrar por socorro das guardas. Dava para ouvi-las gargalhando do outro lado do corredor”.
Cíntia, 28, condenada a 15 anos por duplo assassinato, cumpriu seis e saiu.
Para os não-iniciados na arte da tatuagem carcerária, vale uma explicação. Ela é feita com dois instrumentos: agulha usada e tinta de caneta Bic. O procedimento pode ser dolorido ou, no caso de Cíntia, muito dolorido. A novata então passa por outro teste quando a noite chega. Em cada ‘jega’ dormem duas mulheres em forma de valete (uma com a cabeça nos pés da outra). Quando há mais do que duas presas por cama, é feito um revezamento. No caso de superlotação, a coisa fica ainda mais complicada: além do chão, o banheiro é utilizado como cama. Azar dessa mulher, que ocupa um lugar “público”, é a última a dormir e a primeira a acordar. Por respeito à companheira que passou a noite com a cabeça num buraco imundo, ninguém se atreve a requisitar a latrina durante a madrugada. No dia seguinte, se a novata tiver algum apetite, vai sentir um novo clima de tensão.
“Fica pelada, agacha com as pernas abertas, põe a mão na boca e assopra!” |
Como as delegacias são instalações menores, onde não há espaço para cozinhas coletivas como nos presídios, as refeições – três ao dia – chegam de fora, em bandejas mal-lavadas, ou “bandecos”. O café-da-manhã são alguns pães murchos, com quase nada de margarina e uma jarra de café frio. Almoço e janta vêm em marmitex. Frios.
“Nas primeiras semanas de delegacia eu só comia pão. Era a melhor coisa que tinha. Como ninguém sabe como aquela comida foi feita, fazemos um “recorte”: antes de comer, lavamos a comida com água do cano do chão e temperamos de novo. Depois esquentamos tudo com o “pirulito” [papelão enrolado no plástico, usado para fazer fogo]. O cardápio é arroz e feijão (às vezes com uns bichinhos brancos), carcaça de frango, quibe e “boi ralado” [carne moída]. Cansei de achar pedaço de unha, cabelo e até pentelho na comida. Demorei muitos anos aprendendo a comer de garfo e faca. Em um dia de presa aprendi a comer de colher de novo. Antes de comer a gente é obrigada a ficar de pé e rezar o Pai Nosso em sinal de agradecimento.”
Carolina, 31 anos, falsária, condenada a 1 ano e 8 meses
As peculiaridades gastronômicas das prisões têm deixado de estômago virado os deputados da CPI do sistema carcerário. No Instituto Penal Paulo Sarasate, por exemplo, detentas comem arroz, feijão e mistura servidos dentro de sacos plásticos. A presa agora será transferida da delegacia para cumprir pena num presídio. Bem-vindo à segunda parada de nossa odisséia.
| “Tomei choque na vagina, me queimaram com cigarro e rasparam minha cabeça” |
“Quando a gente entra aqui, nunca sabe o que vai acontecer. Não sabe quem é bom ou ruim, em quem se pode confiar. No primeiro mês eu morria de medo de dormir e não acordar mais. Antes tinha um sono pesado, hoje acordo com qualquer barulho.”
Zilda, 36 anos, presa por roubo a banco, condenada a 5 anos e já esperando sua liberdade.
Existem 55 unidades prisionais exclusivamente femininas no Brasil. Nelas uma mulher faz amigas e inimigas, conhece outras leis, vira evangélica, muda de sexo, aprende tricô, trabalha em funções que não sabia, perde dentes, fica doente e ganha para sempre marcas de ex-presidiária. Muitas das que acabam aqui dizem que entraram na vida do crime por culpa dos companheiros, que as deixam com filhos ou as atraem para o crime com dinheiro fácil para transportar drogas. Algumas percebem o erro tarde demais e se arrependem, outras mergulham de vez na nova vida.
“Eu nunca fui do crime. Uma vez meu companheiro pediu para eu trazer uns pacotes de maconha do interior e fui pega voltando para São Paulo. Fui presa em flagrante. Hoje tenho a plena certeza de que não quero voltar a fazer isso. Quero ter uma vida digna, como sempre tive, a não ser por esse deslize.”
Cida, 52 anos, mãe de dois filhos formados, hoje evangélica, cumprindo o segundo ano de sua pena de seis.
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| Hora da bóia no Presídio de Belém: após o preparo em panelas imundas, as presas lavam a refeição antes de comer |
Camila, presa por tráfico de drogas e contravenção, 32 anos e um filho, condenada a 6 anos.
Num presídio, as mulheres são divididas em celas que têm entre cinco e seis metros quadrados e abrigam de duas a quatro pessoas. Nelas contam com um ou dois beliches, um armário velho, um banheiro e uma janela. O chuveiro é gelado. Água quente, só no banheiro coletivo, ao final do corredor. Mas muitas abrem-mão deste luxo.
| “Cadeia é o único lugar onde a filha pode gritar que a mãe não vai ouvir” |
Camila
CHEIRO DE COLCHÃO SUADO
O uniforme que a presa recebe é uma calça amarelo-berrante, bermuda e camiseta branca. Se a calça sujar, tem de ser lavada à noite e estar seca de manhã, ou ela terá que se virar com a bermuda, mesmo no inverno. Quando isso acontece, muitas usam blusas de lã doadas para cobrir as pernas. Se a roupa rasgar, a presa é quem costura. Eventualmente a roupa velha é substituída. Se o assunto é saúde, as coisas não são melhores. O serviço médico e dentário não é contínuo: ginecologistas aparecem poucas vezes ao ano. Alvos fáceis de doenças, essas mulheres sofrem quando precisam de atendimento mais especializado. “Grande parte dos presídios que visitamos não serve nem para bichos”, declarou o deputado Domingos Dutra (PT-MA), relator da CPI do sistema carcerário. Uma presa nos dá o quadro concreto da situação:
“O cheiro de uma cadeia é de um colchão velho e suado. Procuramos limpar tudo para manter a saúde, mas o cheiro nunca vai embora. A gente tem que pensar que a limpeza é para o nosso próprio bem. Veja o meu caso, acho que tenho uns 15 dentes com cárie por causa da comida horrível, da água sem tratamento e da falta de dentista. Quando alguma de nós está com dor de dente, outra vai lá e arranca. Nunca fui atendida por um dentista aqui dentro. A gente só é encaminhada para o hospital quando está desacordada. Aqui tem um ambulatório, que é nada mais que uma presa dando AAS e Dipirona pra outra. Além disso, a gente só conta com o próprio sistema imunológico. Moça, isso vai sair na Globo? Fala que a gente precisa de médicos.”
Zilda
PRISÃO OU RESORT?
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| O Centro de Justiça de Leoben , na Áustria, nem de longe se parece com os presídios que visitamos nesta reportagem. Nele, 205 internos contam com duas salas de musculação, mesas de ping-pong e espaço multimídia. |
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| Lixo saindo ou comida entrando? Para as moscas, tanto faz |
Assistente social que não quis se identificar. Aparenta uns 30 anos e não demonstra muita paciência com as presas.
SOLIDÃO E MEDO NA C.I.
Os “castigos” impostos às presas indisciplinadas podem variar de perda temporária de benefícios a reclusão nas celas individuais. A C.I. é o tal lugar onde a filha grita e a mãe não escuta – e uma das coisas que mais têm chocado os deputados da CPI do sistema carcerário. É um espaço de 2 x 2m, sem janela, com um colchão mofado e sem lençol, um “boi”, uma porta de aço e uma minúscula fenda por onde chega a comida. Ali, as presas rebeldes ficam em média uma semana, sem poder conversar com ninguém, sem trocar de roupa, sem tomar sol e saindo apenas uma vez por dia para tomar banho.
“Quando a diretora passa temos de largar tudo o que estamos fazendo, colocar as mãos para trás e abaixar a cabeça. Já tomei perca de regalia por não me curvar para a autoridade máxima. Quando a gente fica rebelde e briga ou xinga as guardas, aí o castigo é mais pesado. Elas mandam a gente pra C.I., é horrível. As paredes são pintadas com sangue velho das meninas que foram torturadas ali. Os direitos humanos não permitem este tipo de violência contra a presa, né, mas quem é que vai saber o que está acontecendo no subsolo de uma prisão? Já vi gente saindo morta de lá.”
Camila
MOEDA PRÓPRIA
Mulheres encarceradas têm também alguns benefícios e um dos mais almejados é o trabalho. Diversas empresas têm sucursal dentro de presídios e oferecem emprego, salário e uma oportunidade de redução da pena – a cada três dias trabalhados, a detenta ganha um dia de remição. O salário é o mínimo oficial, mas como elas não podem receber dinheiro vivo, ganham no pecúlio – espécie de caderneta de poupança, sob a tutela do presídio. Todo fim de mês elas recebem um extrato com o saldo. Com o dinheiro, podem comprar itens que o presídio vende ou fazer um vale-postal e mandar parte para a família. Quando termina a pena, a mulher recebe o saldo do pecúlio. Mas conseguir trabalho ali não é fácil. O processo de seleção não leva em conta só a capacidade da presa, mas o crime que cometeu: quanto “pior”, mais difícil arrumar uma ocupação. Além das empresas, as detentas podem conseguir trabalho na própria administração do presídio – considerados os melhores empregos. Um dos mais disputados é na cozinha – nas penitenciárias são as próprias presas que cozinham. Mas mulheres vistas como perigosas demais dificilmente conseguem trabalhar lá. Para elas e para as de pior comportamento é reservado a limpeza.
A presa sem família tem que entregar sua criança para um albergue público |
Antônia
Os presídios também têm suas moedas informais. Os itens do “jumbo”, o Sedex enviado pela família da presa com cigarros, sabonetes, xampu, papel higiênico e peças íntimas, são o verdadeiro dinheiro prisional. “O cigarro é o que vale mais”, diz Antônia. Mas é difícil mensurar quanto vale cada objeto. Isso depende muito do humor, da necessidade e do grau de amizade entre quem está vendendo e comprando.
Junte um monte de mulheres, dê a elas tempo livre e, você sabe, a vaidade será assunto. Mesmo num presídio. Em dias de visita, elas gastam horas se produzindo para maridos, filhos e pais. Arrumam o cabelo, dão um trato nas unhas, se maquiam e se perfumam. Depilação também rola, mas só pode ser feita com lâmina comprada na cadeia. Idem com acetona.
“Não é porque estamos presas que temos que viver como bichos enjaulados. Nosso instinto feminino bate mais forte. Nos dias de visita ficamos muito ansiosas esperando pelos parentes e amigos.”
Antônia
Os “sapatões”, ao seu modo, também se arrumam. Raspam a cabeça, alisam os poucos pêlos de um imaginário bigode, se enchem de correntes masculinas e impostam a voz. “Hoje você vai conhecer minha mãe, se arruma e vê se se comporta”, diz um deles para sua parceira, uma menina loirinha e apaixonada. “A falta de opção e o abandono dos maridos fazem com que elas troquem de sexo”, diz uma assistente social. No Estado de São Paulo, a única penitenciária feminina que permite visita íntima – uma cortininha na frente da cama – é o Presídio da Capital.
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| Presas com filhos, em unidade diferenciada |
“Isso vai sair na Globo? Diz que a gente precisa de remédio. Aqui só tem AAs, Dipirona e nosso sistema imunológico” |
O dicionário do Sol-quadrado
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Barraqueira - Presa mais antiga da cela
Boi - Buraco no chão usado como privada
Boi Ralado - Carne moída
Boqueta - Pequena janela no alto de uma cela
Cadeia de verme - Cadeia não controlada pelo PCC
Cofre - Presa designada para esconder objetos proibidos em orifícios do corpo
Comarca - Delegacia
Cunhada - Mulher de um homem ligado ao PCC
Entrar no ar - Ter um celular dentro da cadeia
Faxina - Presas ligadas ao PCC que “cobram” as que dão mancadas
Irmão - Integrante do PCC
Jegas - Camas de delegacia, feitas de cimento
Jumbo - Encomenda (via sedex) enviada pela família
Pirulito - Papelão enrolado em plástico usado como tocha para esquentar a comida
Recorte - Lavar (literalmente) a comida que vem no bandeco antes de comer
Xis - Xilindró, ou cela de uma delegacia
Sapatão para namorada: “Se arruma, hoje você vai conhecer a minha mãe” |
As detentas também passam o tempo aprendendo a tricotar, desenhar, fazendo uma roda de samba, batucando em baldes e assistindo ao último capítulo da novela, na TV de cinco polegadas que alguns presídios permitem. As cartas são outra distração importante. Além da visita, são o único meio de contato com o mundo externo. Escrever para a família e amigos é uma rotina semanal – pelo menos para as que são alfabetizadas e têm papel, caneta e envelope para isso. Todas as cartas que saem ou entram no presídio são lidas por uma agente penitenciária encarregada de censurar as mensagens que julgar perigosas.
“Como as reeducandas sabem que as cartas são lidas, elas tentam de qualquer forma fazer com que as mensagens não tenham significado para nós, mas já temos prática em saber quando estão tentando passar informações que não devem chegar lá fora. Faço esse trabalho há dois anos e leio cerca de três mil cartas por semana. É o pior trabalho do mundo.”
Agente penitenciária
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| Carta de uma presa entregue para Maxim |
JESUS E MACONHA
As igrejas que têm espaço nos presídios, além de esperança, dão um pouco de distração para as detentas. Batista, Renascer, Assembléia de Deus, Católica e outras também levam para essas meninas roupas e kits de higiene. São as igrejas que organizam festas de Dias das Mães, Dia das Mulheres e Natal.
“Dificilmente uma presa não tem Bíblia. É a primeira coisa que a gente procura quando chega neste inferno. Muitas presas se convertem e seguem a Jesus quando chegam aqui. Algumas só para se aproveitar da boa vontade das igrejas, outras realmente se regeneram e outras aparecem por curiosidade”.
Cíntia
Fora da cadeia, coisas proibidas costumam ser caras e difíceis de conseguir. Dentro, são ainda mais caras, só que mais fáceis. As drogas entram da forma mais óbvia: na genitália. Mas também são escondidas dentro de alimentos. Quem coloca dentro da comida e quem deixa passar, ninguém sabe. Ou todo mundo sabe. Armas também vêm do mesmo jeito. “Entrar no ar” – ter um celular – é uma realidade também nas cadeias para mulheres. No Estado de São Paulo, nenhum presídio feminino tem bloqueador de ligações. Mas os celulares não são levados por familiares, nem na comida, tampouco na genitália. Segundo duas entrevistadas, eles são entregues pelas policiais que cobram pelo “serviço”.
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| Mulheres revelam o dia-a-dia prisional para comissão da CPI: “Presídios não servem nem para bichos”, concluiria o relator |
“O PCC não deixa seus membros usarem crack. Vender pode” |
As regras da firma
Uma ex-presidiária ligada ao PCC nos entregou um código de conduta com dezeseis pontos, conhecido como o “Estatuto da Organização”. A gramática original do documento foi mantida. Ninguém aqui seria louco em alterá-la.
- Lealdade, respeito, e solidariedade acima de tudo ao Partido
- A Luta pela liberdade, justiça e paz
- A união da Luta contra as injustiças e a opressão dentro das prisões
- A contribuição daqueles que estão em Liberdade com os irmãos dentro da prisão através de advogados, dinheiro, ajuda aos familiares e ação de resgate
- O respeito e a solidariedade a todos os membros do Partido, para que não haja conflitos internos, porque aquele que causar conflito interno dentro do Partido, tentando dividir a irmandade será excluído e repudiado do Partido.
- Jamais usar o Partido para resolver conflitos pessoais, contra pessoas de fora. Porque o ideal do Partido está acima de conflitos pessoais. Mas o Partido estará sempre Leal e solidário à todos os seus integrantes para que não venham a sofrerem nenhuma desigualdade ou injustiça em conflitos externos.
- Aquele que estiver em Liberdade “bem estruturado”, mas esquecer de contribuir com os irmãos que estão na cadeia, serão condenados à morte sem perdão
- Os integrantes do Partido tem que dar bom exemplo à serem seguidos e por isso o Partido não admite que haja assalto, estupro e extorsão dentro do Sistema.
- O partido não admite mentiras, traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo, interesse pessoal, mas sim: a verdade, a fidelidade, a hombridade, solidariedade e o interesse como ao Bem de todos, porque somos um por todos e todos por um.
- Todo integrante tem que respeitar a ordem e a disciplina do Partido. Cada um vai receber de acordo com aquilo que fez por merecer. A opinião de Todos será ouvida e respeitada, mas a decisão final será dos fundadores do Partido.
- O Primeiro Comando da Capital PCC fundado no ano de 1993, numa luta descomunal e incansável contra a opressão e as injustiças do Campo de concentração “anexo” à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, tem como tema absoluto a “Liberdade, a Justiça e Paz”.
- O partido não admite rivalidades internas, disputa do poder na Liderança do Comando, pois cada integrante do Comando sabe a função que lhe compete de acordo com sua capacidade para exercê-la.
- Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões.
- A prioridade do Comando no montante é pressionar o Governador do Estado à desativar aquele Campo de Concentração “anexo” à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, de onde surgiu a semente e as raízes do comando, no meio de tantas lutas inglórias e a tantos sofrimentos atrozes.
- Partindo do Comando Central da Capital do KG do Estado, as diretrizes de ações organizadas simultâneas em todos os estabelecimentos penais do Estado, numa guerra sem trégua, sem fronteira, até a vitória final.
- O importante de tudo é que ninguém nos deterá nesta luta porque a semente do Comando se espalhou por todos os Sistemas Penitenciários do estado e conseguimos nos estruturar também do lado de fora, com muitos sacrifícios e muitas perdas irreparáveis, mas nos consolidamos à nível estadual e à médio e longo prazo nos consolidaremos à nível nacional. Em coligação com o Comando Vermelho - CV e PCC iremos revolucionar o país dentro das prisões e nosso braço armado será o Terror “dos Poderosos” opressores e tiranos que usam o Anexo de Taubaté e o Bangú I do Rio de Janeiro como instrumento de vingança da sociedade na fabricação de monstros.
Guarda conversa com presas no Ceará.
“O PCC não deixa seus membros usarem crack. Vender pode” |
Camila
PCC x “verme”
O Primeiro Comando da Capital, ou PCC, foi criado em São Paulo, mas hoje atua em prisões de vários Estados. Seja feminina ou masculina, essas penitenciárias estão sob forte comando da organização. Mesmo entrevistando várias presidiárias, não foi possível descobrir claramente como se faz para fazer parte do PCC. Mas o que importa é que uma vez dentro, não se sai. Só morta ou virando evangélica. Sob o lema: “Liberdade! Justiça! E Paz!”, os integrantes da organização se tratam como “irmãos” e as mulheres desses irmãos são conhecidas como “cunhadas” e têm de se guiar por um estrito código de conduta. Todas as atividades das detentas são controladas e requerem prévia autorização. Se uma desavença acontece e as presas querem recorrer à violência para resolvê-la, só com permissão do PCC. Por incrível que pareça, é o Primeiro Comando da Capital quem mantém um certo equilíbrio nos presídios. Mas isso tem um custo.
“Morto e evangélico não falam. Quando vira evangélica, a pessoa realmente saiu do crime e não vai querer saber do passado. Nós confiamos nessas pessoas. O PCC veio para ditar as novas regras e eu o defendo porque ele é bom. Antigamente na cadeia o que valia era olho por olho, dente por dente. A violência corria solta nas celas. Hoje, o PCC cuida de nós. Claro que quem dá mancada é cobrado pela faxina. O PCC só dá uma chance. Se não souber aproveitar, as conseqüências estão bem escritas no código.”
Andréia, 27 anos, ex-presidiária e ligada ao PCC
“O PCC não autoriza que seus membros sejam usuários de crack, mas podemos traficar a droga, porque é algo muito rentoso. Mas jamais você vai ver um irmão usando a pedra.”
Rosângela, irmã de um integrante do PCC
Existem também as cadeias da oposição ao PCC, chamadas de “verme” – onde, segundo as “irmãs”, o inferno consegue ser ainda pior. Como não há um poder centralizado, cada preso faz a sua própria lei, gerando tensão, desconfiança e violência às vezes descontrolada. Dormir e acordar machucada, ter pertences roubados, apanhar sem saber o porquê e outras atrocidades acontecem com freqüência. Familiares, segundo elas, também não são respeitados. Alguns são furtados durante o dia de visita.
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| Detenta no Piauí tenta ver outros horizontes |
Andréia
Vida após a cela?
A reclusão é uma das formas que nossa sociedade escolheu para punir e reeducar. As prisões que visitamos fazem muito mais que isso. Elas corrompem as detentas, transformando-as em mulheres com fúria nos olhos, destemidas e desesperadas. Um dia a pena termina e elas voltam às ruas. Talvez você encontre uma delas pela frente.
“Quando fiquei presa, o PCC me protegeu. Após um ano e oito meses de cadeia, fui liberta e hoje pago uma mensalidade de R$ 50 para ajudálos. Continuo fazendo minhas ‘coisas’. Se for presa de novo não tem problema, eu vou comer, dormir de graça e ainda vou ter as guardas sendo babá de ladrão, apagando a luz para eu dormir”.
Renata, 30 anos, tem um filho de três anos e marido evangélico
“Fui presa quando estava em um ônibus que saiu de Santo Amaro e ia sentido Interlagos, em São Paulo. Como tinha voltado do mercado, coloquei minhas sacolas embaixo do banco e segui para casa. Não percebi que atrás de mim sentaram dois malandros procurados pela polícia. Quando uma viatura parou o ônibus, os caras colocaram a droga na minha sacola. Fui presa. Após cumprir a pena de quase dois anos, voltei para minha família. Tudo que eu via de errado, eu orava a Deus e pedia para Ele não me deixar corromper, mas mesmo assim comecei a fumar cigarro. Hoje ajudo em uma casa de recuperação para mulheres, mas alguns traumas são para sempre.”
Neusa, 59 anos, mãe de quatro filhos, avó de dois netos, evangélica
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