Iracema C. foi tirar um documento no Poupatempo e acabou presa. Estava foragida da Justiça havia cinco anos. Um baque para os dois filhos pequenos e o marido, que nem sequer sabia do passado da mulher. Sua história: ela conta que foi flagrada num carro roubado com um amigo, um ladrão de carros. Diz que não sabia de nada. Ficou apenas algumas horas na cadeia e saiu numa fuga em massa. Não foi mais procurada pela polícia, achou que não devia mais nada à Justiça e tocou a vida adiante. Há um ano e dois meses, ela está entre os 123 mil presos do Estado de São Paulo, à espera do julgamento.
Este é um exemplo dos casos com que a advogada Maria do Socorro Carvalho lida nas cadeias da periferia de São Paulo. São pessoas pobres e desinformadas, que a criminalista defende por opção. Duas vezes por semana, Maria do Socorro é a doutora Pastoral. É uma das 1300 voluntárias da Pastoral Carcerária no Estado de São Paulo, entidade assistencialista da Igreja Católica com dezenas de escritórios em todo o país.
Doutora Pastoral só trabalha duas vezes por semana. Dois dias mais intensos que toda a carreira de muitos advogados. A reportagem do Terra Magazine acompanhou a rotina de trabalho da voluntária.
Terça - amor bandido
Numa sala pequena e abafada no centro de São Paulo, doutora Pastoral recebe um contingente de mulheres, mães, irmãs, namoradas, todas em busca de ajuda legal para parentes presos.
"Acho interessante a capacidade que a mulher tem de amar. Você nunca vê um homem atravessar esta porta para batalhar uma remoção, uma liberdade condicional de nenhum parente preso, e muito menos enfrentar uma fila em dias de visita", diz a advogada. Ela interrompe a entrevista, vai até a porta e grita: "próxima!"
É com um sorriso acanhado que Iracília Barbosa dos Santos entra e puxa a cadeira. Vai direto ao assunto. O filho mais velho, condenado a seis anos e dois meses por assalto a mão armada, já cumpriu dois terços da pena, é réu primário e pleiteia a liberdade condicional. Teve "duas saidinhas", que é como os mais íntimos do sistema prisional se referem às visitas à família, direito previsto na lei de execução penal. "Na primeira, ele ficou todo sem jeito em casa. Na segunda, ah ,doutora, ele estava tão à vontade...", suspira a mãe do detento, que está no presídio de Mongaguá. O mesmo onde morreu o diretor na última rebelião do PCC.
Sai Iracília, é a vez de Daiane. Ao explicar seu nome, ela conta que sua mãe gostava "daquela princesa". Seu "príncipe" está preso há um ano e meio por tentativa de homicídio. "O caso de seu marido é difícil, ele praticou crime contra a vida. Terá de ir a júri popular. E a fila para esse júri demora de quatro a cinco anos", avisa doutora Pastoral. Lágrimas escorrem do rosto de Daiane. Ela deixa a sala culpando os amigos e as drogas que levaram o marido, montador de móveis, para o "mau caminho".
A tarde promete. Lá fora, as mulheres se espremem na escadaria e numa micro ante-sala. Uma delas intima a advogada a dar um papel para provar ao marido com vasta folha de antecedentes criminais que ela, de fato, esteve na Pastoral Carcerária. "Ele diz que eu não quero que ele saia da cadeia, que eu não estou fazendo nada para isso", conta Leia, contendo o choro. Antes de sair, faz uma confissão: quando fica deprimida, a ex-professora de piano toca músicas de Fábio Jr. e de Zezé di Camargo e Luciano.
Mas o que mais impressiona a doutora Pastoral são os casos de mulheres como a filha de Cíntia Bueno, presa por tráfico quando levava sessenta gramas de maconha dentro da vagina ao marido preso por assalto. "Essas mulheres fazem de tudo por esses homens. Você precisa ver aquelas que levam o celular embrulhado no papel carbono atravessado na vagina para passar pelo raio X", conta doutora Pastoral, levantando-se para mostrar em que altura do ventre as presas levam o celular ou a droga. Tão fundo para não serem vistos pelo espelho durante a revista.
Mesmo atuando como voluntária há cinco anos na Pastoral Carcerária, a advogada não entende por que as mulheres dos presos são atraídas pelo que chama de "amor bandido".
Quarta - panela de pressão
As visitas às cadeias ficaram mais complicadas depois dos ataques do PCC em São Paulo. Doutora Pastoral foi barrada no cadeião de Pinheiros. Nesta semana, na cadeia de Arujá, acompanhada pela coordenadora nacional da Pastoral Carcerária Feminina, a americana Heide Cerneka, e pelo defensor público Marcelo Novaes, recebeu outro não.
Uma hora de conversa com o carcereiro, um telefonema ao delegado, que estava em horário de almoço, e doutora Pastoral atravessa as grades da carceragem. A cadeia, com capacidade para 24 mulheres, abriga 133, a maioria presa por tentar embarcar com drogas no Aeroporto Internacional de Guarulhos. "Uma panela de pressão pronta pra explodir", diz o carcereiro Dalmir. Ele não quer revelar o sobrenome. Ele não quer deixar a repórter entrar mesmo com autorização da juíza. Ele só quer bater o cartão e voltar pra casa.
Ao retornar do almoço no meio da tarde, o delegado João Umberto Xavier justifica a proibição da reportagem na carceragem: "Eu não sei se isso vai ser usado politicamente contra alguém. E além do mais, quatro ou cinco delas têm convergência com o PCC".
Duas horas e meia depois, doutora Pastoral sai com um relato numérico: dezessete estrangeiras, três grávidas, três asmáticas, uma com o calcanhar quebrado, uma deficiente mental. O ginecologista não aparece há quatro meses.
A pior notícia da visita: Iracema, aquela que foi presa no Poupatempo, soube que o marido, aquele que desconhecia seu passado, morreu. Os detalhes ela só vai saber na próxima visita da mãe.
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