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domingo, 17 de abril de 2011

Vou posta essa reportagem pq achei um tremendo equivoco

A cadeia como vc nunca viu
As 1 116 prisões do Brasil formam uma nação à parte. Um país com economia própria, movida a extorsão, suborno e comércio ilegal. Um lugar cheio de leis não escritas, impostas pelo crime organizado. É para lá que nós vamos agora. Aperte suas algemas.

Maio de 2006. Oito horas da manhã. O técnico de computação Bruno*, 28 anos, casado e com uma filhinha de 9 meses, acordou atrasado para o trabalho. Por causa do rodízio de carros em São Paulo, o carro dele não podia rodar naquele dia. “Então resolvi fazer uma traquinagem”, conta. “Peguei fita isolante e transformei o 3 da minha placa em 8.”

Mas no meio do caminho tinha uma blitz policial. A espinha gelou quando o policial mandou encostar. Bruno preferiu fingir que não era com ele e zarpou. Só parou quando os PMs mais à frente apontaram suas armas. Os policiais vieram com tudo: “Mão na cabeça!!”

Pouco depois, Bruno estava num camburão, sendo levado para uma delegacia na zona oeste de São Paulo.

Fichado por falsidade ideológica e resistência à prisão, foi para a um dos “corrós”, as celas de delegacia para os que acabam de ser presos. É o primeiro estágio da vida na cadeia. E o pior deles. Fernando, outro paulistano de classe média que esteve lá após ser pego com uma trouxinha de maconha, descreve as instalações: “Era uma espécie de solitária, onde deixam os presos de castigo. Só cabiam dois, mas a cadeia da delegacia estava tão lotada que fiquei com mais 4 presos. Não tinha banheiro nem privada nem torneira. O lugar para dormir era um pedaço de papelão”. Nos xadrezes maiores a situação é a mesma: há casos de celas para 20 homens abrigando 120, o que dá 60 cm2 para cada um.

Ali, às cotoveladas, têm de se revezar para dormir – ou tentar pegar no sono de joelhos. Mas, mesmo onde todos são iguais, alguns são “mais iguais”: os bandidos mais poderosos costumam ficar em redes bem no alto, pertinho das grades, onde é mais arejado.

Por lei, o sujeito deveria ficar no máximo 30 dias na delegacia. E depois ir para uma cadeia pública ou um centro de detenção provisória, onde esperaria pela decisão da sentença. Aí, depois de condenado pela Justiça, iria para um presídio. Mas não funciona assim. Superlotado, o sistema penitenciário virou um caos. Em 2002, havia 240 mil presos para 182 mil vagas, ou seja, 58 mil presos a mais do que o sistema carcerário comporta. Em 2007, esse déficit já estava em 157 mil presos – 437 mil para 262 mil vagas. Aí complica. Tanto que, hoje, 13% dos detentos que já foram julgados estão cumprindo pena em delegacias.

Não foi esse, porém, o caso de Bruno. Ele teve dinheiro para pagar um advogado e conseguiu logo uma transferência para um centro de detenção provisória, o meio-termo entre delegacia e presídio, em Franco da Rocha (SP). Chegando lá, foi logo recepcionado por 4 detentos. Um deles se apresentou como “piloto” do lugar. Os outros presos e os carcereiros o chamavam de “senhor”. Ele andava com 4 celulares e passava o dia dando ordens.

Primeira ordem ao novato Bruno: pagar para não dormir no banheiro. Se ele fosse um bandidão com várias passagens pela cadeia, conhecido no mundo do crime, não teria que gastar nada. “É só chegar na cordialidade”, diz Silas, ex-presidiário que cumpriu 6 anos por assalto à mão armada e foi libertado há 8 meses. “Mas, se o cara é mané, primário, piolho... Aí é diferente.”

Bruno era mané, primário e piolho. Tudo ao mesmo tempo, pelo menos do ponto de vista dos bandidos profissionais. E teve de pagar R$ 120 pelo privilégio de dormir numa parte menos fedorenta da cela, que dividiria com 23 homens por 21 dias.

Saiu caro. Nas penitenciárias os preços costumam ser mais camaradas. As celas para quem está cumprindo pena são projetadas para abrigar menos gente do que as da detenção provisória. São para 4 a 6 pessoas, em espaços que vão de 9 a 16 m2. Mas chegam a ficar 12 em cada xadrez – às vezes mais de 20. Some a isso o fato de que o Estado se limita a definir para qual presídio o sujeito vai, e que lá dentro os presos têm autonomia para decidir a cela que ele vai ocupar, e temos um mercado imobiliário de vagas.

Nele, um canto numa cela menos abarrotada custa de R$ 100 a R$ 200. Por R$ 50 você fica numa com mais gente. Se não tiver moral no meio da bandidagem nem nada para dar, fica sem saída: vai ter que dormir na cela mais lotada. De preferência no banheiro.

As autoridades sabem desse tipo de comércio, e afirmam que o único jeito de acabar com ele é pôr fim à superlotação. “Essa situação vai acabar quando houver um estabelecimento penal que acomode a todos, em que não haja a necessidade de disputar espaços. Aí você liquida o comércio”, diz Maurício Kuehne, diretor do Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça. Mas não é fácil. E, por ora, o piolho que não quiser dormir com a cara na privada que pague por isso. Como Bruno pagou.

Ah, claro: não basta desembolsar dinheiro pelo “imóvel”. Você também precisa comprar os móveis. Nesse caso, um único móvel: o colchão. Bruno pagou R$ 30 ao chefe dos presos pelo direito de ter um.

Além de freqüente, esse tipo de extorsão fica cada vez mais sofisticado. Agora estamos na era da “cadeia 2.0”. A tecnologia já é a melhor amiga do bandido moderno. Se fosse há alguns anos, Bruno teria pago por sua vaga e seu colchão com cigarros. Os maços ainda são moeda corrente nos presídios do mundo todo, mas deixaram de ser a única. Agora o dinheiro eletrônico também faz parte: “Um dos presos me deu o celular dele e passou o número de uma conta-poupança para que a minha mulher fizesse o depósito pela vaga e pelo colchão”. São contas abertas em nome de parentes de presos ou, para dificultar eventuais investigações, por laranjas – sujeitos que recebem uns trocados para ceder sua conta bancária para o crime.

Com tantas facilidades para receber dinheiro, seria de surpreender se as despesas de Bruno ficassem em meros R$ 150. E não ficaram.

SEXO

“Logo que peguei o telefone, o cara me disse: ‘Manda sua mulher depositar R$ 2 mil. É pra você ter segurança aqui dentro e ninguém bulir com você’. Entendi o recado”, conta Bruno. O senso comum, afinal, diz que todo mundo que vai para a cadeia recebe um estupro coletivo. E isso deixa qualquer pessoa apavorada.

Valdinete, mãe de um preso de 24 anos que está há dois num presídio em Presidente Bernardes, interior de São Paulo, conhece bem essa tensão. “Não fazia nem uma semana que ele estava na cadeia e tocou o telefone. Meu filho disse que, se eu não depositasse R$ 10 mil numa conta, abusariam dele”, diz. “Depois de um tempo de conversa ficou acertado por R$ 3 mil, que eu tive de pedir emprestado. Não me arrependo: ele teria se matado se tivesse acontecido.”

Não aconteceu. E por um preço relativamente baixo. Isso porque a violência sexual­ deixou de ser regra na cadeia depois que começaram as visitas íntimas. A primeira penitenciária a liberar o sexo entre os presos e as visitantes foi a do Carandiru, em 1986, e dali para a frente a permissão se espalhou pelo Brasil.

Foi uma mudança e tanto na vida dos presidiários. Além de servir como válvula de escape, o sexo na cadeia fez com que alguns virassem pais atrás das grades. E mais: tem os que conheceram a esposa atual dentro da cadeia mesmo. É que várias mulheres de detentos levam amigas nos dias de visita para conhecer companheiros deles. E às vezes as moças acabam se engraçando...

Patrícia foi uma delas. Em 1987 ela foi ao presídio com uma vizinha e conheceu Cláudio, um belo moreno condenado a mais de 100 anos por homicídio, formação de quadrilha e assalto à mão armada. Nunca mais largou dele. Casados há 20 anos, numa cerimônia que aconteceu dentro da cadeia, nunca se encontraram fora de lá. As transas são rápidas. Como não há camas para todos os casais, eles têm de se revezar. Sem falar que o corredor fica um murmurinho danado nesses dias, e só tem uma cortina ao lado do beliche para isolar os pombinhos da barulheira. Mas Patrícia, hoje, não está nem aí: “Ah, na hora você não escuta nada! É a semana inteira esperando aqueles minutinhos... A gente finge que está num quarto de motel”.

E que ninguém pense em estragar essas fantasias. Num lugar com centenas de homens privados de sexo, a etiqueta no trato da mulher alheia é pra lá de rigorosa. Olhar para qualquer uma que apareça para visitar um companheiro, seja esposa, amante, prostituta, mãe, filha, enteada ou o que for, é proibido. Nos corredores, todos devem andar com os olhos fixos no chão. Apresentar-se, então, esqueça. Só se o outro preso der permissão. Mesmo quando isso acontece, o correto é manter uma das mãos para trás e estender a outra para o cumprimento. Dar beijinho no rosto de visita alheia, jamais. E passar uma cantada é morte certa.

“Quando eu visitava meu marido, o companheiro de cela dele só levantava a cabeça quando ele dizia ‘Vai lá, pode cumprimentar a Nete’ ”, diz Ivonete, viúva de um detento. E olha que os dois eram unha e carne – tinham passado 15 anos na mesma cela.

Essas não são as únicas mulheres nas prisões masculinas. Tem as que passam 24 horas por dia lá dentro mesmo: os travestis, que estão em quase todas as prisões. Com seios de silicone e curvas esculpidas por hormônios, eles não abrem mão das roupas de mulher e da maquiagem pesada. Circulam rebolando pelos pátios e nos fins de semana redobram os cuidados. “Capricho no visual. Fico liiinda!”, diz Alessandro. Quer dizer, Priscila. “Olha: é P-r-i-s-c-y-l-l-a, com ‘y’ depois do ‘c’ e dois ‘eles’. Anota direitinho, viu?” Ok! E foi presa por quê, Pri? “Por assalto, sabe? Agora aqui dou sonho, felicidade e outras coisinhas mais para este povo sofrido.”

Dá mesmo. O sexo entre eles e os presos héteros não é exatamente raro. Tanto que há um eufemismo para travestis nos presídios: “mulheres de cadeia”. “Nos estudos que conduzimos, não bastava perguntar se o preso mantinha relações homossexuais. Era preciso acrescentar: e com mulher de cadeia?”, escreveu o médico Drauzio Varella no best seller Estação Carandiru.

Mas a convivência não é suave. “As bichas têm que ficar na ala delas. E quem quiser que vá procurar. Não tem essa de cantar orelha de malandro, que toma logo é porrada”, diz Sorocabano, há 7 anos no presídio de Avaré por latrocínio.

As regras não param por aí. Travestis (e gays em geral) não podem beber do mesmo copo nem usar pratos e talheres dos outros presos. Essa é mais uma das muitas leis não escritas que regem a vida dos presidiários, um código que hoje está mais rígido que nunca. Vejamos por quê.

LEGISLAÇÃO

Pela tradição das cadeias brasileiras, quem faz cumprir essas leis internas são os chefes da faxina – os presos responsáveis pela limpeza do presídio e pela distribuição de comida, que ganham R$ 285 por mês do Estado. Os “faxinas” são eleitos pelos próprios presos e ficam com a tarefa de passar as reclamações dos detentos para a administração da penitenciária. Precisam ser caras de confiança. Como têm o respeito de todo mundo, também fazem o papel de juízes nos presídios – são eles que decidem quem está com a razão quando acontece alguma desavença.

Mas com a chegada do crime organizado esse sistema começou a mudar. E que chegada: hoje um grande sindicato do crime controla nada menos que 80% dos presídios do estado de São Paulo, por exemplo. O nome dele você conhece: Primeiro Comando da Capital, ou PCC.

Hoje temida, a facção começou bem modesta. No início era só um time de futebol na penitenciária de Taubaté, interior de São Paulo. O escrete: Cesinha, Geleião, Esquisito, Dafé, Cara Gorda, Bicho Feio, Baianão e Zé Cachorro. Esses 8 eram conhecidos como “os da capital”, já que tinham vindo de São Paulo, e formavam uma equipe imbatível. Na bola e no crime. Eram a elite de Taubaté. Mandavam e desmandavam. Em 31 de agosto de 1993 um deles perguntou: “A gente só vai usar nossa popularidade para jogar bola?” Resolveram então montar uma espécie de sindicato mesmo, com a idéia de representar os detentos perante o Estado. Aí “os da capital” adicionaram as palavras “Primeiro Comando” ao nome do time de futebol. Nascia o PCC.

No estatuto do grupo, escrito naquele dia, constava que cada membro deveria ajudar o outro financeiramente, mesmo quando estivesse solto. Foi o que deu músculos à organização, que passou a adquirir armas, financiar fugas e subornar policiais e carcereiros para ter seus interesses atendidos. E continua até hoje: os afiliados que estão fora da cadeia devem contribuir mensalmente com R$ 500. Quem estiver no regime semi-aberto (quando o preso trabalha de dia e volta à cadeia só para dormir) dá R$ 250. E os detentos em tempo integral, R$ 25.

Conforme os fundadores eram transferidos de presídio, iam catequizando mais e mais presos para sua máfia. O fluxo de caixa aumentou. Logo, membros que estavam soltos se viram com fundos para ampliar seus negócios. O principal deles: comprar carregamentos de drogas, abrir bocas para vendê-las e, assim, refinanciar o “partido” com os lucros. Com o dinheiro se multiplicando, o PCC começou a agir também como um banco para seus afiliados, emprestando dinheiro a juros de 5% ao mês. E mais: começou a bancar advogados para reduzir penas dos membros.

Graças a essas engrenagens, aquilo que começou com 8 presos em Taubaté cresceu sem parar. Não se sabe exatamente quantos afiliados o PCC tem. Algumas autoridades estimam em dezenas de milhares, o que faria dela a maior facção do crime organizado no país. Uma facção que espalhou-se por outros estados, como Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e até o Rio de Janeiro, terra de outro comando bem conhecido, o Vermelho.

Todo presídio que o PCC domina funciona da mesma forma. Os faxinas deixam de ser os manda-chuvas. Cedem o lugar para os gerentes da facção, os pilotos. São de 8 a 10 em cada presídio, cada um com 100 a 200 presos sob suas ordens.

Os pilotos são eleitos por voto direto dos membros do “partido”. E o vencedor tem seu nome levado ao “torre”, o líder do presídio, que responde diretamente à cúpula do PCC. Lá em cima está Marcos Herbas Camacho, o Marcola, ajudado por um “conselho” de 20 homens de confiança. O líder da facção, aliás, passou um ano, entre 2006 e 2007, num presídio de segurança “supermáxima” (veja na página 63), que praticamente isola o preso. Mas agora está de volta a uma penitenciária menos rigorosa, em Presidente Prudente (SP).

Mesmo com tanta gente acima na hierarquia, o poder dos pilotos é notável. Cabe a eles aplicar as punições a quem fere o código de conduta da cadeia. Uma tarefa que exige bom senso, já que existem penas diferentes para cada tipo de delito.

Se um preso usar o banheiro enquanto o outro está comendo, por exemplo, temos uma falta leve. Punição: dois dias sem comer. Mexer nos pertences de colega de cela é uma infração média. A vítima leva o caso para o piloto e ele decide se o ladrão deve tomar uma surra ou, pior que isso, ser banido para uma área isolada do presídio – o “seguro”, uma espécie de cadeia dentro da cadeia. São alas separadas, longe do convívio com os outros presos, onde o detento tem que passar 24 horas por dia na cela, sem tomar banho de sol. Quem costumava ficar nessas áreas eram os estupradores, sempre jurados de morte nos presídios. Agora, com a construção de penitenciárias específicas para eles, os seguros ficam cheios de perseguidos pelo crime organizado.

Agora, se alguém não pagar dívidas, cagüetar companheiros ou, crime dos crimes, desviar dinheiro do PCC, aí não tem jeito. Essas são faltas graves, passíveis de pena de morte. Certa vez, um preso conhecido como DVD foi acusado de roubar a organização. O piloto de sua ala formou um júri com 8 membros da facção. No pátio, formaram um círculo em volta de DVD e começou a votação. Oito a zero. O réu, como manda a política do PCC, podia escolher que morte teria: a estiletadas, por estrangulamento ou forca. Horas depois o corpo dele balançava pendurado em uma cela.

LAZER

Além de resolver esse tipo de querela, os pilotos também controlam as bocas financiadas pelo PCC do lado de fora e, claro, o tráfico interno. Os preços são inflacionados, porque trazem embutidos os gastos com o suborno de agentes penitenciários. Mas não chegam a ser extorsivos: a maconha, usada o tempo todo, sai por R$ 15 o cigarro, contra uns R$ 3 nas ruas; cocaína, que custa de R$ 10 a R$ 20 o papelote do lado de fora, sai por R$ 40 lá dentro; por uma pedra de crack, ele cobram... Não, crack não pode. Primeiro, porque o PCC considera esse derivado fumável da cocaína uma droga tão perigosa que acaba matando o cliente, o que não é interessante. Também perceberam que os bandidos usuários de crack são os mais traiçoeiros, fazem tudo pelo vício e nada pelos companheiros: 2 a 0 contra o crack.

Não que isso tenha banido a droga. Nos presídios controlados por outras facções, como o Comando Vermelho, ela é tolerada. E mesmo em São Paulo os presos dão um jeitinho. “Quando tinha um membro do PCC na minha cela, na delegacia, todo mundo dizia que era contra o crack. Mas foi só ele ir embora para começar aquela fumaça. TODOS usavam”, diz Fernando.

Se é assim com as drogas, não é diferente com o álcool. A tradicional maria-louca, uma pinga feita a partir de restos de comida fermentados, é o drinque mais popular (veja a receita na página 60). Uma dose sai por R$ 10. Subornando, porém, dá para conseguir uma garrafa de pinga convencional por R$ 100. Já, se você for um chefão do crime, tudo fica mais fácil. Sombra, um figurão do PCC, resolveu comemorar seus 41 anos em 2001 com uma festa de arromba no Carandiru. Especula-se que entraram dezenas de quilos de carne, caixas de cerveja, maconha e garrafas de Martini (a bebida favorita do aniversariante). A festa varou a madrugada e ficou conhecida como “Carandiru Grill”. O arrasta-pé deu tanto o que falar entre os presos que foi parar nos jornais. Aí o então diretor do presídio foi chamado para prestar esclarecimentos à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP). Depois de ouvi-lo, o então secretário, Nagashi Furukawa, declarou que não, os presidiários não tinham consumido drogas nem álcool na festa. “Mas os agentes penitenciários sabiam que muitos detentos precisaram ser carregados por colegas para suas celas enquanto o dia já amanhecia”, diz o repórter policial Josmar Jozino em seu livro Cobras e Lagartos, sobre o PCC.

Bom, terminada a festa, hora de voltar ao batente. Quer dizer: ao telefone.

TELECOMUNICAÇÕES

Hoje não dá para conceber o crime organizado das cadeias sem o celular. As celas parecem escritórios de trabalho. Pendurados ao telefone o dia todo, o pilotos mandam matar, organizam seqüestros e acertam o financiamento de assaltos. Por exemplo: se você é um criminoso ligado ao crime organizado, pode ligar para o celular de um piloto e pedir que ele libere dinheiro para a compra de armas, ou do que mais for necessário, para sua operação. Depois tem que devolver a quantia emprestada mais 10% do valor do assalto, que vai para o caixa da organização. É como uma bolsa de valores: o crime paga pela cota de um assalto e espera pelos lucros. Vem dando certo, tanto que o maior assalto a banco da história – aquele mesmo, que tirou R$ 170 milhões do Banco Central em Fortaleza – tinha participação do PCC.

Para agilizar suas comunicações, eles montam centrais telefônicas clandestinas. É fácil. Primeiro, arranjam uma casa qualquer, compram uma linha telefônica com documentos falsos, um aparelho de PABX e colocam alguém para trabalhar como telefonista. Aí os presos ligam a cobrar da cadeia, com seus pré-pagos, para a tal linha telefônica, pedem que a telefonista transfira a ligação para outro celular e pronto: dá para falar à vontade – e sem colocar créditos, já que a conta vai para o telefone fixo da central. Essas linhas geralmente acabam cortadas por falta de pagamento. Sem falar que, vira e mexe, a polícia consegue rastreá-las e acabar com a festa. Mas aí eles compram outra linha e começam tudo de novo.

Por essas, a telefonia celular disseminou-se tanto nas prisões que, hoje, a polícia de São Paulo recolhe cerca de 900 aparelhos por mês em suas blitze nas cadeias (em 2006 eram “só” 200) – e nem assim conseguem resultado: logo que tiram os aparelhos chegam outros. Como entram? Às vezes com as mulheres que visitam os presos. Elas recebem de R$ 200 a R$ 300 para esconder o aparelho na vagina e entrar com ele. Mas, na maioria dos casos, é com a ajuda de funcionários corruptos, que cobram de R$ 500 a R$ 800 para levar um até o “cliente”. A SAP afirma que, para cada celular apreendido, há uma investigação para ver se algum servidor público facilitou a entrada. E que, quando comprova a culpa, ele é demitido. Mas, como vimos, não tem sido o suficiente.

O governo federal também promete ação. Quer instalar novos bloqueadores de celular nos presídios – os cerca de 50 em operação hoje estão ultrapassados: barram somente alguns tipos de aparelho. Os modelos mais recentes, capazes de lidar com qualquer celular, estão em teste.

Enquanto nada de concreto acontece, os telefones vão ficando tão banais nas cadeias que nem servem mais só para o crime. A viúva Ivonete, cujo marido era um daqueles 8 fundadores do PCC, sabe bem: os dois passavam horas por dia namorando ao telefone. Mas no meio do caminho tinha uma pedra: “Eu morria de ciúmes! Sabia que muitos presos fazem sexo por telefone? Achava que, se ele falasse com alguma vagabunda, já estava me traindo”. Bom, se os planos para acabar com os celulares nos presídios derem certo, as Ivonetes de hoje não terão mais esse problema.

Domingo no parque

Com as visitas íntimas, muitos presos fazem filhos dentro da prisão. E vêem as crianças crescer sem sair de trás das grades.

Cheiro do ralo

A privada sempre emana um cheiro forte e nada aprazível, por causa do péssimo estado de manutenção dos encanamentos. Para deixar a coisa menos insuportável, costumam tapar o buraco com uma bola de meia cheia de areia.

Na surdina

O banheiro fica fora da vista da porta. Então, para evitar que algum agente que estiver passando apreenda o aparelho ou exija suborno, os presos costumam recarregar seus celulares fazendo um gato na fiação do chuveiro.

Coração de mãe?

Sempre cabe mais um nas celas de delegacias e cadeias públicas (como esta aqui, no Espírito Santo), onde é raro sobrar mais de 1 m2 por prisioneiro. E as camas são só para quem tem status no mundo do crime.

Bons de cama

Um xadrez de presídio tem entre 9 e 16 m2 , e é feito para abrigar de 4 a 6 pessoas. Muitas vezes ficam 12. Aí a cama de solteiro vira de casal. E o jeito é dormir “de valete”, um de ponta-cabeça para o outro.

Cachorrada

“O celular é tão comum nas cadeias que, uma vez, um preso me ligou à noite perguntando se eu poderia fazer um favor: ‘Sabe, Fátima, é que eu estou com um cachorrinho na cela e queria que você me ajudasse a escolher um nome para ele’. ‘Cachorro? Mas que diabos um cachorro tá fazendo na sua cela?’ Ele contou que, depois de muita conversa e alguma grana, conseguiu subornar um carcereiro, que trouxe um filhote. Os companheiros de cela toparam. E o cachorrinho passou a viver na cadeia. O nome dele? ‘X’.”

Mestres-cucas

Hoje a maioria das prisões não tem refeitório. A comida vem em marmitas. E sempre chega fria, sem gosto. Um terror. Para deixar a coisa mais suportável, eles esquentam e temperam o grude. Aqui, na cadeia pública de Serra, no Espírito Santo, usam um braseiro (do lado de fora da cela, por falta de espaço). Mas fogueiras assim são exceção.

Fogão elétrico

O mais comum na hora de esquentar a bóia é usar fogões improvisados . Este aqui é feito com uma mistura de cimento, areia e argila sobre uma base de ferro. No sulco, vai uma resistência artesanal.

Cardápio:

• Café-da-manhã: Pão com margarina e café. Sem leite.

• Almoço e jantar diários: Marmitas de arroz e feijão com picadinho, carne moída ou salsicha com batata cozida.

• Às quartas: O feijão é preto.

• Aos domingos: Macarrão com frango.

• Sobremesa: Banana e laranja, às vezes maçã ou abacaxi.

O que as famílias podem levar:

• Comida: Sucos e leite (em embalagens longa vida), bolachas, bolos e temperos.

• Higiene pessoal: Sabonete, pasta de dentes, desodorante.

Receita de maria-louca

Como fazem a pinga da cadeia.

1. Os presos pegam uma vasilha para 10 litros e enchem mais ou menos até a metade.

2. Aí colocam 2 quilos de arroz, açúcar e cascas de frutas.

3. Depois de misturar bem, tampam por uns 10 dias para a mistura fermentar. Mexem dia sim, dia não. No final, a coisa vira um vinho (ou quase isso).

4. Então eles coam e transferem o líquido para uma lata com um furo na parte de cima, encaixam ali uma serpentina de cobre e levam ao fogo.

5. O álcool do “vinho” evapora antes da água e resfria na serpentina. Pronto: as gotas de maria-louca começam a pingar. Está servido?

Armazém clandestino

Cada preso pode receber 1,5 quilo de alimentos e produtos de higiene pessoal. Mas alguns subornam para receber mais, e revendem em mercadinhos ilegais dentro das celas.

Índice tabaco

Apesar de o dinheiro de verdade ter invadido as cadeias, maços de cigarros ainda são moeda.

• Marlboro: R$ 6

• L&M e Free: R$ 4,80

• Marcas de fundo de quintal: R$ 2

McLanche Feliz

Para sair da rotina das marmitas, alguns presos fazem lanches em seus fornos improvisados, com ingredientes que entram ilegalmente no xadrez. E montam “cantinas” nas celas. Os preços em algumas cadeias:

• Misto-quente: R$ 4.

• Misto-frio: R$ 3,50

• Sanduíche de mortadela: R$ 3,50

Diário de um detento

5h30 às 6h: Acordar.

6h30: O “faxina” traz o café-da-manhã.

8h: Celas abertas.

11h30: Almoço.

13h: Voltar para os corredores e pátios.

16h30: Começar a voltar para as celas.

18h: Jantar.

19 às 22h: Os agentes não voltam. mais. Hora de a maioria usar o telefone.

Depois das 22h: Dormir – ou esticar mais um pouco, dependendo do acordo em cada cela.

Ui, santa!

Quase toda prisão tem travestis. E há detentos heterossexuais que transam com eles. Mas... “Se for, tem que ir morar com as bichas. Aqui, no meio de nós, é que não vai ficar ninguém dando beijo na boca!”, vocifera Sorocabano, que cumpre pena de 22 anos por latrocínio em Avaré (SP).

Com jeitinho, entra. Ou não

Este é um trecho do manual que presidiários de São Paulo usam para ensinar visitas a contrabandear celulares para a cadeia. A receita é embrulhar o aparelho com certos materiais, como papel-carbono, para driblar o detector de metais. Se funciona? Eles não garantem.

Lá, Maria é mário

Há 25 955 mulheres presas no país. As cadeias femininas são mais tranqüilas, enfeitadas e arrumadinhas que as dos homens. O maior problema ali é sexual. Garotas jovens e bonitas dificilmente conseguem se livrar do assédio das mulheres homossexuais. Algumas são obrigadas a assumir um caso. E mais: “Se alguma de nós tratar as sapatas como se fossem mulheres, vai apanhar na certa. Elas se dão nomes masculinos, e a gente tem que chamá-las assim ou já sabe o que acontece... Maria é Mário, Paula é Paulo”, diz Ana, que ficou dois anos presa por formação de quadrilha. Lá, é raro ver um homem visitar uma detenta. Suzana, 38 anos, presa por tráfico internacional de cocaína, explica: “Quando uma mulher vai para a cadeia, o cara não aceita. Arruma outra e acabou.”

Rebelião celular

O PCC coordenou 81 rebeliões simultâneas em presídios e cadeias públicas de São Paulo em maio de 2006. Enquanto isso, coordenava 293 atentados, que deixaram 152 mortos. Tal façanha seria impossível sem a maior arma da facção: o celular.

Segurança supermáxima

Os presídios de Catanduvas (PR) e Presidente Bernardes (SP) são os únicos do país a usar o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). A rigidez é tal que, por lei, nenhum preso pode passar mais de dois anos neles.

As regras:

• Passar 22 horas por dia na cela – individual.

• Nas duas horas diárias de banho de sol, deve sair algemado, com agentes acompanhando.

• Proibido TV, jornais e revistas.

• Livros que “ofendam a moral e os bons costumes” serão confiscados.

Imagens em cadeia:

1. Área isolada: É para onde vão os presos jurados de morte. Lá não tem banho de sol.

2. Marmita: Não é o ponto forte da cadeia, como você pode ver. Prisioneiros novatos chegam a ficar dias sem comer para não ter de encarar.

3. Correspondência: Quem não sabe escrever recorre aos “carteiros”, que redigem cartas em troca de badulaques.

4. Tatuagem: É proibido fazer na cadeia. Mas eles dão um jeito com agulhas improvisadas.

5. Faxineiros: A limpeza fica por conta dos presos mais respeitados.

Para saber mais
PCC, a Facção

Fátima Souza, Editora RCB, 2007.

Cobras e Lagartos

Josmar Jozino, Editora Objetiva, 2004.


Autor: Fátima Souza e Alexandre Versignassi
Fonte:http://www.oguapore.com/lendo_print.asp?id=44433
 

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