Por medo da violência, os pais de classe média buscam e levam os filhos a toda parte. A primeira saída é um acontecimento
Bruno Galletti Delazari, 11 anos, está em plena campanha. Ele reivindica o direito de ir à escola ou ao supermercado sozinho. A mãe, a veterinária Miriam, quer que o filho conquiste mais independência, mas teme os riscos de andar de ônibus ou a pé numa cidade grande, onde a violência é corriqueira. A dificuldade transformou a primeira saída de ônibus num marco na vida da maioria dos adolescentes de classe média. O acontecimento exige um ritual de iniciação que inclui roteiro detalhado, mapas, treinos e intermináveis recomendações. "Digo para ele guardar bem o dinheiro, não falar com estranhos, prestar atenção nos carros", conta Miriam. "Ela fala a mesma coisa todos os dias. Uma vez por mês já estava bom", protesta o menino.
Bruno já fez conquistas. No último semestre voltou da aula de inglês, foi ao dentista e chegou até a comprar alguns CDs no supermercado - tudo sozinho. "Fico atento às pessoas. Vejo se não tem ninguém suspeito", relata o menino, que não se afasta de casa mais do que dez quadras. "Estou aos poucos aumentando o perímetro", explica a mãe. Com uma diplomacia incomum na sua idade, Bruno diz que não tem pressa, só quer fazer um pouco de exercício e deixar a mãe trabalhar sossegada. Mas ele já antecipa a principal vantagem da autonomia. "Vou poder fazer o programa que quiser", sonha.
A psicopedagoga e terapeuta infantil Josefina Faccioli mostra que a independência é apenas um dos ganhos dessa libertação. "É que as brincadeiras na rua, as idas e vindas à padaria, à farmácia e à escola possibilitavam experimentar conceitos como espaço e tempo de forma lúdica", explica Josefina. Agora elas aprendem a teoria, mas falta a vivência. "É enfrentando pequenos desafios durante a infância e a adolescência que treinamos para lidar com a adversidade na vida adulta. São etapas para o amadurecimento ", completa.
A secretária Andrea Arantes, 33 anos, do Rio, começou este ano a deixar o filho, Pedro, 12 anos, ir a pé para a escola. "Não foi por acaso que o matriculei num colégio perto de casa. Pior seria se ele tivesse de andar de ônibus", diz Andrea. "Mesmo assim fico preocupada. A gente não sabe o que acontece por aí." Pedro é compreensivo. "Entendo o medo dela. Ela vê na televisão histórias de crianças que vão à padaria e não voltam mais, mas para mim foi bom. Me senti mais velho", avalia.
Para a dentista Isaura Monteiro Buelau, o amadurecimento pode ser adiado em nome da segurança. Ela, que cresceu numa cidade pequena, lamenta a falta de liberdade dos filhos. "Acho que a superproteção os deixa imaturos e acomodados." Mas justifica: "Quero eles vivos." Guilherme, 18 anos, já dirige o próprio carro. Entrou pela primeira vez num ônibus aos 16 anos, quando precisou fazer um trabalho escolar inadiável. "Tive medo de perder o ponto. Quando entrei na casa do meu amigo, foi o maior alívio. Os colegas até tiraram um sarrinho." Com suas irmãs, Renata, 14 anos, e Bettina, 17, a preocupação é ainda maior. Mas Bettina tem feito algumas investidas. "Eu queria fazer aula de teatro. Estudamos o trajeto, meu irmão e meu primo me levaram até o ponto e fui toda preocupada", conta ela. Como tem uma banda e seu namorado não mora no bairro, ela tem usado mais os coletivos, mas com alguns cuidados: senta-se com mulheres, não usa roupas de griffe, chamativas ou cavadas e pede a alguém que a espere no ponto de chegada. "Eu nunca fico tranquila."
Apesar de só andar de ônibus em último caso, Bettina já sabe que é capaz de se locomover sozinha. Essa autoconfiança é necessária. "Vou aonde quiser. Só preciso saber que ônibus passa lá", diz, orgulhosa, Cecília Lourenço Góes, 14 anos. Ela e o irmão, Vicente, 13 anos, começaram a treinar por iniciativa dos pais. "Meu marido incentivou mais. Eu vacilei um pouco", lembra a bióloga Cristina, mãe dos meninos. "Mas concluímos que era importante esse contato com o mundo. Não podemos protegê-los o tempo todo." Cristina e o marido montaram uma estratégia para a façanha: voltar do colégio. Os dois fizeram a rota de ônibus com as crianças para dar-lhes segurança, a escola foi avisada da alteração na rotina e a empregada ficou esperando no ponto de chegada. "Só senti medo de assalto. Mas como meu irmão é enorme, eu me senti protegida", conta a menina. Depois, vieram outros progressos. A ida ao dentista, a visita aos amigos, etc. "Eles sabem onde nos encontrar por telefone e levam um dinheirinho para imprevistos", ressalta a mãe.
"O poder de locomover-se ensina o adolescente a zelar por sua segurança", afirma Maria Cristina Ferrari, médica assistente do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital das Clínicas de São Paulo. O sonho dos pais é ser onipresentes e onipotentes, mas isso é impossível. Ainda bem.
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